Do fundo do baú

Marta Fernandes de Sousa Costa  

Houve tempo em que, mais que "do lar", fui "do campo". Recém casada, morei muito tempo na fazenda, no interior de Pedro Osório, com esporádicas vindas a Pelotas – situação que me agradava, pelas raízes campeiras, desenvolvidas desde a infância.
Mas, na fazenda, naquela época – pela distância estabelecida pelas estradas precárias (antes da construção da ponte sobre o rio Piratini e do asfalto, na BR116), pela falta de luz elétrica, telefonia e outros avanços que depois aconteceram – era preciso criatividade para enfrentar o dia-a-dia. Tendo optado por ter filhos mais tarde (em razão de conhecer a vivência de pai distante, tratando das atividades na propriedade rural, e mãe na cidade, cuidando dos filhos, em idade escolar) e estando o marido envolvido com seus afazeres, cabia-me inventar, além das tarefas necessárias ao bom andamento doméstico, outras que driblassem a solidão dos dias que se estendiam, intermináveis.
Naquele tempo, principalmente em razão do isolamento em que viviam os moradores do campo, com idas quinzenais ao abastecimento comercial mais próximo, a ordem era ser o mais independente possível, produzindo na propriedade tudo que pudesse facilitar a vida, além de obter o maior aproveitamento de cada produto ou situação.
Embora a rede elétrica ainda não houvesse chegado lá, possuíamos dois geradores de energia (um na reserva), o que nos dava certo conforto, desde que nos adaptássemos às circunstâncias. A geladeira, por exemplo, era a querosene, e muito vi o sogro estirado no piso frio da copa, acertando a mecha até ficar azul, atividade que exigia muita paciência e a utilização obrigatória do querosene da marca Jacaré. Mas, ligado à tardinha, o gerador permitia que se assistisse ao noticiário e às novelas, na TV Zenith 14 polegadas, visor em preto e branco – presente de casamento, muito apreciado. Quando prontos para dormir, do interior da casa (grande conforto), desligávamos o gerador, continuando com a luz das baterias. Sempre que chovia, havia a preocupação em juntar água destilada para manter o nível, nas baterias.
Sem a possibilidade de possuir um freezer, a carne consumida era basicamente de ovinos, mas mensalmente era providenciado o abate de uma vaca para fornecimento de carne aos posteiros, que dela faziam charque, a fim de garantir a conservação. Seguidamente também ocorria o abate de porcos, motivo de festa, pois os parentes do capataz, Elmiro, tiravam folga do instituto de beleza em Rio Grande e vinham ajudar na empreitada.
Da Banca do Sêo Antoninho, no Mercado central, eu trazia mais de cem metros de tripa, pimenta e alho, para juntos prepararmos as lingüiças, enchendo as tripas com o auxílio da máquina de guisado, retirado o moedor. A imensa cabeça do porco, raça Landrace, passava a noite cozinhando no caldeirão de ferro, sobre uma trempe, no fogo à lenha. Pela manha, a carne da cabeça era cortada, temperada e prensada nas formas adequadas para preparar o queijo de porco. Para maior durabilidade, os lombos de porco, depois de temperados e assados, eram conservados em meio à banha, em vasilhas semelhantes às utilizadas para a coleta do leite. As lingüiças, quando prontas, _ após a repartição com a cozinha dos funcionários e com os inúmeros ajudantes _ eram postas no varal, para secar ao sol; algumas iam para a banha, junto com os lombinhos.
Certo dia, quando publiquei crônicas com lembranças da infância, um amigo, homem da cidade, disse que gostaria de saber sobre a vida na fazenda, como adulta. Considerei, na ocasião, que as histórias, por banais, não despertariam interesse. Mas o tempo passou, levando inclusive o tempo que sobrava, e os fatos então corriqueiros se tornaram pitorescos. Por isso, anos após, remexo o baú e puxo lembranças.
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