Jales: Juiz condena estado de SP por violação de direitos humanos de mulher trans em ação judicial

Juiz afirma que linguagem utilizada pela Procuradoria reproduziu violência estrutural e patologização indevida; Estado foi condenado a pagar R$ 30 mil por danos morais

04/12/2025|10:14|Brasília


Sede da Procuradoria-Geral de São Paulo / Créditos: PGE-SP/Divulgação

A Vara do Juizado Especial Cível e Criminal de Jales (SP) condenou o estado de São Paulo ao pagamento de R$ 30 mil por danos morais a uma mulher negra transexual após reconhecer que ela foi alvo de linguagem discriminatória em um processo judicial no qual buscava acesso ao tratamento de hormonização pelo SUS. A decisão, assinada pelo juiz Fernando Antônio de Lima, concluiu que a Procuradoria do Estado utilizou expressões transfóbicas, alternou pronomes, desconsiderou o nome social da autora e tratou sua identidade de gênero como “doença”, configurando discriminação institucional e violação a direitos humanos.

Segundo a autora, a contestação apresentada pelo Estado no caso de hormonização continha diversas inconsistências: ela foi mencionada ora no masculino, ora no feminino; teve o nome civil destacado em detrimento do nome social; e viu sua identidade descrita como patológica, em trecho que mencionava que o SUS forneceria tratamento para “a doença do autor”.

O estado defendeu-se alegando que eventuais inconsistências decorreram da padronização de modelos de peças processuais utilizados pelo Núcleo de Saúde Pública, do elevado volume de demandas e das informações inicialmente fornecidas pela própria autora na petição inicial do processo anterior — em que constava, em destaque, o nome civil. Argumentou ainda que não houve dolo e que a autora poderia ter solicitado correções no processo original. Porém, o juiz rejeitou integralmente esses argumentos.

Na decisão, o magistrado afirma que a linguagem empregada pelo Estado não constitui mera falha operacional, mas sim ato de violência simbólica, com impacto concreto sobre a dignidade da autora. Citando Judith Butler, ele afirma que “se a linguagem sustenta o corpo, pode também ameaçar sua existência”, destacando que mulheres trans — especialmente mulheres negras — são historicamente submetidas a práticas de desumanização, estigma e violência extrema no Brasil.

O juiz avaliou como especialmente grave a referência à transexualidade como “doença”, lembrando que, desde 2018, a Organização Mundial da Saúde retirou as identidades trans da classificação de transtornos mentais. Para ele, ao reproduzir terminologia patologizante, o Estado reforça preconceitos, resgata práticas pseudocientíficas e legitima discursos que negam a humanidade de pessoas trans.

“A condição de mulher trans não é doença. Doença é o preconceito. Doença é a ignorância. Doença é a intolerância”, escreveu o magistrado.

A sentença aplica o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero e o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, ambos do CNJ, e articula elementos do direito interno com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, especialmente o caso “Vicky Hernández vs. Honduras”, que trata da responsabilidade estatal em atos de transfobia institucional.

Segundo o magistrado, não se trata de avaliar apenas o desconforto individual da autora, mas de reconhecer que práticas como a adotada pela Procuradoria reproduzem um padrão estrutural de violência contra pessoas trans. O juiz afirma que a atuação estatal, ao negar o nome social e patologizar a identidade da autora, reiterou formas históricas de apagamento e estigmatização.

Indenização e fundamentos do dano moral

O juiz julgou procedente a ação e condenou o Estado de São Paulo a pagar R$ 30 mil em danos morais, valor solicitado pela autora, acrescido de correção pela Selic a partir da data da sentença. Para o magistrado, a reparação tem caráter duplo: compensar o sofrimento provocado pela atuação discriminatória da Procuradoria e orientar o Estado a evitar que práticas semelhantes se repitam.

A decisão afirma que o dano moral é “inegável” diante da gravidade da conduta, já que a autora — uma mulher negra transexual — teve sua identidade negada e patologizada no interior de um processo judicial. O juiz ressaltou que, ao chamá-la ora de “autor” e ora de “autora”, e ao associar a transexualidade à ideia de “doença”, o estado reproduziu estigmas que integram a violência estrutural vivida por mulheres trans no Brasil, configurando discriminação institucional.

O magistrado também destacou que a conduta estatal afetou o projeto de vida da autora, categoria reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como elemento protegido da dignidade humana. Para ele, a circulação e a reafirmação de estigmas comprometem a imagem pessoal e a integridade psicológica da autora, o que caracteriza plenamente o dano moral. Assim, concluiu que a reparação é não apenas adequada, mas necessária.

O processo tramita com o número 1006256-50.2025.8.26.0297.logo-jota

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