* Isabella Parisi
O direito à saúde, consagrado no artigo 196 da Constituição Federal[1], é um dos direitos fundamentais assegurados a todos os cidadãos e, por meio dele, torna-se possível a efetivação de outros, como por exemplo o direito à dignidade da pessoa humana. No entanto, apesar da previsão constitucional, sua realização nem sempre se dá por meio da atuação direta e exclusiva do Estado.
No Brasil, onde o Sistema Único de Saúde (SUS) cumpre papel essencial, mas enfrenta limitações estruturais e orçamentárias, a busca por atendimento de qualidade fez com que fosse necessário recorrer à iniciativa privada como forma de suplementar o direito à saúde. Nesse contexto, os planos de saúde ganharam relevância, mas também passaram a ser objeto de controvérsias envolvendo a extensão da cobertura contratual diante das necessidades dos beneficiários.
A saúde suplementar é regulamentada, principalmente, pela Lei nº 9.656/1998 e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por definir o chamado Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde.
O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde foi criado com o objetivo de estabelecer os tratamentos mínimos que deveriam ser obrigatoriamente cobertos por todas as operadoras. Contudo, ao decorrer do tempo, avanços terapêuticos foram surgindo, implementando novas formas de tratamentos para uma mesma doença, a depender das condições de cada paciente, de modo que o Rol nem sempre acompanhou a velocidade das descobertas médicas, implicando em recusa de cobertura de tratamentos com eficácia comprovada prescritos por profissionais habilitados.
Contudo, muitas vezes, tratamentos médicos prescritos por profissionais habilitados e com eficácia comprovada não constam no rol da ANS, levando os planos de saúde a negarem cobertura. A justificativa por parte dos planos de saúde é uma só: se não consta no rol da ANS, não há necessidade de cobertura, mesmo com prescrição médica e eficácia comprovada.
As operadoras de saúde utilizavam o Rol como forma de fundamentar a negativa de cobertura, sob alegação de que se o procedimento não fosse previsto pelo Rol da ANS, não haveria necessidade de custeá-lo.
As reiteradas negativas das operadoras de saúde levaram os beneficiários a recorrerem ao Poder Judiciário, buscando decisões que determinassem a cobertura pelas seguradoras.
A alta demanda de conflitos entre planos de saúde e seus contratantes evidenciou lacuna na regulamentação das operadoras de saúde, levando à relevante discussão sobre a natureza do rol da ANS, se é meramente exemplificativo, ou então, taxativo. Com a discussão acerca da natureza do rol, surgiu uma questão ainda mais delicada: até que ponto a autonomia contratual pode ser invocada para restringir o acesso ao direito fundamental à saúde? Seria válido cláusulas contratuais padronizadas, frequentemente impostas ao consumidor em condição de vulnerabilidade, limitar o direito constitucional à saúde?
Durante muitos anos, predominou no Judiciário a interpretação de que o rol da ANS era exemplificativo, o que permitia a cobertura de tratamentos não listados, desde que recomendados por médicos e respaldados por evidências científicas. No entanto, esse entendimento foi reformulado em 2022 com o julgamento de dois Embargos de Divergência em Recurso Especial (EREsp 1.886.929 e EREsp 18.897.040), oportunidade na qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a considerar o rol como, em regra, taxativo, admitindo exceções apenas em situações específicas e mediante requisitos técnicos rigorosos, sendo denominada como “taxatividade mitigada”.
A taxatividade do rol da ANS, mesmo que mitigada, ainda assim poderia criar obstáculos à proteção do direito à saúde, especialmente quando se trata de pessoas com doenças raras, tratamentos de alto custo ou terapias inovadoras ainda não reconhecidas pela ANS
O argumento central do STJ foi o de conferir previsibilidade e segurança jurídica às operadoras de planos de saúde, além de evitar desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos. Porém, tal entendimento foi amplamente criticado, já que pareceu priorizar a estabilidade dos contratos e a lucratividade das empresas privadas em detrimento da vida e da dignidade humana, princípios basilares da Constituição.
Vale ressaltar que os planos de saúde são, em sua essência, contratos de adesão, previsto no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor[2]. Esses contratos são firmados sem possibilidade de negociação individual das cláusulas, ou seja, sem que haja abertura para discussão em relação à cobertura médica, colocando os beneficiários em posição de ampla desvantagem.
Em resposta à insegurança jurídica provocada pelo STJ, foi aprovada a Lei nº 14.454/2022 pelo Congresso Nacional, a qual modificou a Lei dos Planos de Saúde, colocando fim à discussão, estabelecendo que o rol da ANS tem caráter exemplificativo, servindo apenas como referência básica. A nova norma também define critérios objetivos para a cobertura de procedimentos fora do rol, como a existência de comprovação científica de eficácia ou recomendação por órgãos de avaliação reconhecidos nacional ou internacionalmente.
Essa mudança legislativa reafirmou o entendimento de que os direitos constitucionais devem prevalecer sobre cláusulas contratuais limitadoras, sobretudo quando estas obstam a efetivação do direito à saúde.
A discussão em torno da natureza do rol da ANS expõe o conflito existente entre a autonomia contratual das operadoras de planos de saúde e a garantia constitucional do direito à saúde. Embora o ordenamento jurídico reconheça a liberdade contratual, essa liberdade não pode ser exercida de forma absoluta quando compromete direitos fundamentais. A recusa de cobertura com base em cláusulas padronizadas, firmadas em contextos de clara desigualdade entre as partes, evidencia a necessidade de uma atuação regulatória e judicial que considere, acima de tudo, os direitos fundamentais resguardados pela Constituição.
Apesar de a Lei nº 14.454/2022 ter encerrado as discussões sobre a natureza do rol, determinando que se trata de mera referência básica, isso não significa, na prática, que todos os conflitos acabaram. Mesmo com a nova lei, muitos beneficiários ainda enfrentam negativas de cobertura e precisam recorrer ao Judiciário para garantir um direito que, em tese, já estaria resguardado.
O simples fato de um tratamento ou medicamento não estar listado no rol não pode mais servir como justificativa automática para negar assistência por parte das operadoras de saúde, especialmente quando há indicação médica e comprovação de eficácia. Entretanto, as seguradoras continuam atuando de forma abusiva e obstando a manutenção do direito à vida do beneficiário, indo de encontro com a própria Lei nº 14.454/2022 e com as garantias da Constituição Federal. Esse cenário revela que, apesar da inovação legislativa, o problema persiste e a efetivação do direito à saúde, no âmbito da saúde suplementar, ainda é um desafio jurídico e social em aberto.
*Isabella Parisi é bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e advogada da área cível contenciosa do Granito Boneli.
Sobre o Granito Boneli Advogados
O Granito Boneli Advogados é um escritório formado por profissionais com ampla expertise em Direito Público e Privado, com foco em Direito Empresarial. Oferece assessoria jurídica personalizada e completa, projetada de acordo com as necessidades específicas de cada cliente, abrangendo diversos campos de atuação, como Crise Financeira e Recuperação Empresarial, Direito Tributário, Contratos Empresariais, Planejamento Patrimonial e Sucessório, Direito Imobiliário, Relações de Consumo e Direito Trabalhista. Reconhecido nacionalmente por diversas organizações de classificação técnica da advocacia e certificado pela ISO 9001, o escritório possui sede em Campinas (SP) e filiais em Cuiabá (MT), São Luís (MA) e Florianópolis (SC).
[1] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[2] Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
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