Região concentrou quase 18 mil conflitos por terra e água entre 1985 e 2023, com crescimento nos últimos anos, causados principalmente por fazendeiros
Foi lançado na segunda-feira (21), na ocasião do V Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acontece em São Luís (MA) entre os dias 21 e 25 de julho, o Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, que projeta um futuro ‘sombrio’ para o Cerrado caso não aconteçam mudanças efetivas no quadro apresentado nas últimas quatro décadas.
Segundo a publicação, o cenário do bioma é de acirramento dos conflitos a partir de 2003, com crescimento nos últimos anos. O documento inédito, que possui um capítulo específico sobre o Cerrado, traz uma radiografia do campo no Brasil por meio da análise de dados de conflitos entre 1985 a 2023. Trata-se do mais abrangente, rigoroso e sistemático levantamento de dados sobre conflitos no campo existente no país.
“Nessa trajetória, o período entre 2008 e 2015 é especialmente relevante. Está marcado pela emergência e crescente consolidação do processo de “neoextrativismo” no Cerrado, entendido como a ênfase em estratégias de desenvolvimento centradas na exportação de commodities, aprofundando a dependência e os conflitos territoriais nas fronteiras agrominerais”, explica Diana Aguiar, pesquisadora e coordenadora do Grupo de Pesquisa Néctar - Ecologia Política e Territorialidades, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e colaboradora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
“Esse giro também está marcado por um refluxo das ações dos movimentos, com a intensificação dos conflitos, especialmente a partir de 2010, cada vez mais associados a ataques a direitos e ações de violência”, destaca a pesquisadora.
Aguiar também relaciona o último intervalo da série analisada (de 2016 a 2023) com o processo de ruptura democrática. Nesse período, há o registro da maior média de conflitos por ano na região ecológica (627,38 ocorrências), com maior intensidade no Matopiba – região de expansão agrícola no Cerrado composta pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Além disso, conforme a publicação, o aumento das ocorrências de conflitos nesse período explica-se pelo autoritarismo e as inúmeras violações de direitos que sofreram os povos do campo, reflexo da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, o que também influenciou em uma menor participação dos movimentos sociais, entre 1% e 19%.
O Atlas dos Conflitos no Campo – documento construído em parceria com grupos de pesquisa, universidades, laboratórios, além da contribuição de pesquisadores de diversas instituições de ensino do país – usou como base o registro de dados compilados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno da CPT (Cedoc-CPT) e mostra que, entre 1985 e 2023, ocorreram quase 18 mil conflitos por terra e água no Cerrado. Além disso, mais de cinco mil localidades foram envolvidas nessas ocorrências.
O estudo realizou análises com base na divisão da série histórica em seis intervalos (1985-1995, 1996-1999, 2000-2002, 2003-2007, 2008-2015 e 2016-2023). Segundo o Atlas, o quarto e sexto períodos (2003-2007 e 2016-2023) apresentam as maiores médias de conflitos por ano no Cerrado – 602,2 e 627,38, respectivamente.
O registro das ocorrências demonstra que a atuação dos movimentos sociais teve menor relevância nesse primeiro intervalo (1985-1995) – isto é, de 1% a 19% do total –, quando houve o início da expansão da fronteira agrícola sobre a maior parte do Cerrado. Já o intervalo seguinte (1996-1999) observou aumento na média de conflitos por ano (538,25) – acima, inclusive, da média histórica (460,15) –, explicada pelo crescimento das ações dos movimentos do campo, que se manteve acima dos 40% e, em 1998, representou cerca de 50%.
No início dos anos 2000 – especificamente, entre 2000 e 2002 –, a tendência é de decréscimo nas ocorrências de conflitos no Cerrado, além de uma menor atuação dos movimentos do campo – ainda que relativamente alta – ou seja, de 30 a 39% do total. No quarto intervalo da série (2003-2007), período que coincide com o primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, o estudo sinaliza o acirramento dos conflitos no bioma, com o segundo maior pico de ocorrências de conflitos da história do Cerrado em 2003 (ou seja, 310 registros ou 43% do total), em decorrência das ações do movimentos.
Entre 2008 e 2015 – intervalo subdividido em dois momentos (2008-2010 e 2011-2015) –, percebe-se um recuo nas ocorrências de conflitos de 2007 para 2008 e tendência de crescimento dos registros em 2009 e 2010. Por outro lado, as ações dos movimentos do campo no Cerrado representam cerca de 43% do total em 2009, mas caem para quase 23% em 2010. No segundo momento desse intervalo, de 2011 a 2015, o Atlas aponta que a intensificação dos conflitos no bioma associa-se a ataques a direitos e ações de violência contra os povos e comunidades tradicionais. No geral, os conflitos mantiveram-se próximos à média histórica (ou seja, em torno de 450 ocorrências por ano) e a relevância das ações dos movimentos no Cerrado representou entre 20 e 29% do total.
Resistências
Em relação às resistências dos movimentos sociais do campo, comunidades e povos tradicionais do Cerrado, o Atlas dos Conflitos no Campo divide a análise em três períodos ao longo dos quase 40 anos da série histórica. Entre 1985 e 1994, quando houve maior destaque da categoria de posseiros; de 1995 a 2010, quando os sem-terra e, em menor medida, os assentados ocupam a dianteira; e de 2011 a 2023, intervalo caracterizado pela relevância dos povos tradicionais, em especial os povos indígenas.
Nesse primeiro período, a partir de 1985, os posseiros representavam cerca de 60% dos sujeitos que sofriam com os conflitos no campo. Segundo a publicação, “trata-se de um período com predominância dos sujeitos da reforma agrária clássica na esteira dos debates pós-redemocratização e no período pré e pós-constituinte”.
A partir do segundo intervalo (1995-2010), os sem-terra e os assentados somavam 58% dos sujeitos que sofriam com os conflitos. Segundo o Atlas, essa configuração se explica pelo período de ocupações como estratégia de luta pela reforma agrária, o que levou à conquista histórica de assentamentos, ainda que insuficiente para resolver o problema da concentração de terras no país.
Por fim, no terceiro período, entre 2011 e 2023, o Atlas demonstra que os povos e comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas, por exemplo) somaram em média 46,2% de todos os conflitos. Em 2011 e 2016, os quilombolas foram os mais atingidos, ao passo que os indígenas foram os povos tradicionais mais acometidos pelos conflitos nos demais anos e, em 2020 – primeiro ano da pandemia de Covid-19 –, chegaram a representar 52% do total de atingidos por conflitos no Cerrado.
Agentes causadores
O Atlas também dá conta de que, no Cerrado, os fazendeiros sempre foram os principais causadores de conflitos, uma vez que representam cerca de 46% do total. Entre 1985 e 2007, essa categoria correspondeu a 53% e, em segundo lugar, figura o Estado, com 20% do total destes anos. Entre 2008 e 2019, a figura do grileiro ganha destaque entre os agentes causadores de conflitos – em especial, a partir de 2008 –, juntamente com as empresas (22%), que ultrapassam o Estado (9%).
Por fim, entre 2020 e 2023, o Estado assume, mais uma vez, posição de destaque – com 26% do total de conflitos –, ultrapassa as empresas (14%), mas ainda fica atrás dos fazendeiros (32%). “O Estado vai jogando um papel cada vez mais importante na defesa dos interesses de fazendeiros e empresas, em um contexto que, como já dito, está marcado pelo acirramento dos conflitos ao longo dos últimos quatro anos da série histórica”, conclui a coordenadora da pesquisa, Diana Aguiar .
Atlas dos Conflitos
O documento é resultado de uma construção conjunta do Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Geografia Agrária (GeoAgrária) da Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Laboratório de Estudos sobre Movimentos Sociais e Territorialidades (Lemto) da Universidade Federal Fluminense (UFF), com a contribuição de pesquisadores de diversas universidades do país em parceria com a CPT. O trabalho teve como base o registro contínuo de dados pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc), criado em 1985, onde se encontram arquivadas informações físicas e digitais coletadas pela rede pastoral.
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