Gaudêncio Torquato
A
arquitetura dos Poderes no Brasil apresenta fissuras, comprometendo os
princípios de autonomia, harmonia e independência, conforme reza a letra
constitucional. Ora, é o Poder Executivo, que costumeiramente invade a
seara do Legislativo, por meio de uma grande quantidade de Medidas
Provisórias, sem caráter de urgência, conforme elas exigem; ora é o
Poder Legislativo, que deixa imenso vácuo ao não aprovar legislação
infraconstitucional para fechar os buracos abertos pela CF de 88.
E nesse
vácuo entra o Poder Judiciário, ao qual são submetidas questões de
natureza constitucional não resolvidas por lei. Uma onda crítica bate
nas portas da Suprema Corte, agora acusada de invadir a roça do Poder
Legislativo, dando vazão ao conceito de judiocracia, democracia plasmada
sob o jugo dos aplicadores da lei. Fosse essa apenas a mancha que suja
as vestes de Thêmis, a deusa da Justiça, os danos que têm abalado
seriamente a imagem do Judiciário, a partir da mais alta Corte, não
seriam tão graves.
A
artilharia pesada que tem o STF como alvo deve-se, sobretudo, à
suspeição sobre o comportamento de alguns ilustres componentes da Corte,
identificados como soldados de causas partidárias ou simpatizantes de
A, B ou C, figuras que os escolheram quando governavam o país. Ademais,
nos Estados, membros de instâncias judiciais, alguns de altas posições,
têm sido envolvidos com suspeita de favorecimentos.
Nunca se
viu o poder dos juízes tão abalado por críticas. A constatação é grave.
Afinal de contas, trata-se do Poder mais identificado com a virtude da
moral. Representa o altar mais elevado e nobre da verdade e da justiça.
Acusações, mesmo isoladas, atingindo um ou outro de seus pares, acabam
maculando a imagem da instituição. Até se compreende que parcela da
indignação acumulada no país nesses tempos de polarização política se
dirige ao Judiciário. Mas devemos reconhecer que sua imagem apequenada
constitui um dos maiores danos à alma nacional.
Sob esse
contexto, é oportuno levantar a ideia, tão debatida, de rever os
critérios de nomeação de ministros do Supremo e dos Tribunais de
Justiça. Nossa maior Corte não tem juiz de carreira, eis que seus
membros são escolhidos pelo presidente da República e, mesmo com seus
méritos, são jogados na vala do viés partidário.
Urge
puxar das gavetas do Congresso projetos que versam sobre a matéria.
Alguns já são conhecidos, como aquele que sugere a nomeação de quadros
por instituições como o próprio Poder Judiciário, o Congresso, a OAB, o
MP e o Presidente da República. É evidente que uma escolha, a partir do
envolvimento de entidades sérias e Poderes constituídos, terá caráter
plural, ganhando maior legitimidade e respeito da sociedade.
Essa
visão, que valoriza os eixos de nossa democracia participativa, seria
aplicada também nos Estados, fazendo-se a adaptação para as instituições
locais.
O fato é
que nenhuma autoridade, por mais alta, pode se escudar no manto sagrado
do cargo. O Judiciário é o mais respeitado dos Poderes, seja pela
identidade de seus integrantes, seja pela nobreza de suas funções.
É triste
constatar que a figura do juiz em nosso País não se cerca mais daquela
aura sagrada que tanto reverência impunha no passado. Em tempos idos,
cultivava-se admiração por eles. Os juízes assumiam na plenitude os
traços nobres, que Bacon tão bem descreveu em seus ensaios: “os juízes
devem ser mais instruídos do que sutis, mais reverendos do que
aclamados, mais circunspetos do que audaciosos. Acima de todas as
coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza.”
O juiz ainda tem de enfrentar um calvário particular, a via crucis da
crise no seu espaço profissional, determinada pelos dilemas impostos
pelo caráter dual do Estado brasileiro. De um lado, o Estado liberal,
fincado nas bases do equilíbrio entre os Poderes, no império do direito e
das garantias individuais. De outro, o Estado assistencial, de caráter
providencial, voltado para a expansão dos direitos sociais, ajustados e
revigorados pela Constituição de 88. Os resultados vão bater em sua
mesa: enxurradas de demandas crescentes e repetitivas em questões de
toda a ordem.
Chegou a hora da verdade para os Tribunais. O juiz deve ser, por excelência, o protótipo das virtudes.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato
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