Ricardo Toledo Santos Filho, vice-presidente da OAB São Paulo
Quando foi promulgado, por
decreto-lei há 78 anos, o Código de Processo Penal refletiu a ditadura
do Estado Novo e trouxe dispositivos que ofendem o amplo direito de
defesa, mas têm resistido às alterações introduzidas na legislação penal
do Brasil mesmo nos períodos de reconquista democrática, como os
iniciados em 1945 e 1985. Entre essas deformidades jurídicas destaca-se o
artigo 385 do CPP, que autoriza o juiz a condenar, na ação penal
pública, mesmo que o Ministério Público reconheça a inocência e peça a
absolvição do réu.
Estigmatizado
pela consciência jurídica nacional, o artigo 385 passou incólume pelo
“pacote anticrime” recém-aprovado no Congresso Nacional, omissão que
caracterizou a perda de mais uma oportunidade de se remover tal nota
destoante do nosso ordenamento jurídico, em que se acha acolhido o
sistema acusatório (no qual somente ao Ministério Público incumbe a pública acusação). Remanesceu,
no entanto, a possibilidade do debate, e operadores do Direito têm
revivido a controvérsia que se estabeleceu pelo cotejo do artigo 385,
que admite a desistência da acusação, e o artigo 42, segundo o qual “o
Ministério Público não poderá desistir da ação penal”. Trata-se, em
verdade e ao fundo, de celeuma entre correntes do Direito Penal. De um
lado, a linha inquisitorial, que sustentou a vigência do artigo 385; de
outro, o processo penal de estrutura acusatória, albergado na
Constituição de 1988, a qual, portanto, não recepcionou o artigo
superado.
Como
é natural, a tendência orgânica do MP, sustentada pelo dever de ofício,
é demonstrar completamente a tipificação de crimes e apontar autores,
seguindo a determinação do artigo 41 do CPP: “A denúncia ou queixa
conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias,
a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa
identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das
testemunhas”. Embora ordinariamente não ocorra com frequência, ao fim da
ação penal, pedido de desistência da acusação, existem exceções, diante
de casos flagrantes de inculpabilidade do réu apurada durante a
tramitação da persecução criminal, quando, por exemplo, testemunhas
atestam sua inocência e desmontam o arenoso castelo de culpa construído
no início, de forma provisória, sem a certeza plena da responsabilidade.
Tais
exceções tornam inaceitável o comando do artigo 385 do CPP por conceder
ao magistrado o poder de menoscabar a renúncia por parte do MP - dominus litis -
à acusação, e, movido por supostas convicções que não encontram
respaldo nos autos e nas manifestações das partes, condenar o acusado já
declarado inocente por quem menos se esperava e a quem cabe a acusação.
É o julgador-acusador redivivo... É matéria de obviedade flagrante,
própria ao Conselheiro Acácio, reconhecer que, se quem tema missão
de acusar admite que o réu não cometeu crime, resulta um contrassenso
manter ao arbítrio do magistrado o poder da condenação, atuando como
juiz-acusador, como nos ritos autocráticos da Inquisição – e, o que não é
menos grave, assumindo o papel que o MP se recusou a desempenhar.
Em
rigor, tal possibilidade agride o princípio da imparcialidade do
magistrado, que, condenando, faz uma escolha pessoal à revelia das
competências que lhe estão distribuídas na Constituição, usurpando
prerrogativa que é do MP, titular formal da pretensão punitiva – pois
seguramente não há maneira de aceitar demonstrada a autoria de um delito
senão pelas alegações do parquet,
decorrente da prova produzida. A sentença é fruto do cotejo da
acusação (tese) e da defesa (antítese), e se a primeira se exime de
sustentar a procedência da denúncia, em razão da ausência de lastro
fático que a possa validar, a única conclusão (síntese) cabível ao
magistrado é a absolvição do réu. Como ainda diria o Conselheiro Acácio,
inexistindo acusação e, portanto, provas de autoria, não pode haver
jamais condenação.
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