O meu lugar


Luciana Fortes Farias 
Sempre foi assim. Quando fecho os olhos, chegam devagar, de mansinho e sem alardes, nuances de cores que se movimentam e vão passando de um lado pra outro como nuvens ou como tinta leitosa, brilhante, colorindo meus pensamentos e o mundo invisível que se torna quase palpável.
Lembro de brincar com a luz e perceber os padrões que se formavam quando ela se misturava ante minhas pálpebras cerradas. Não importava o horário, nem as condições. Uma nova paisagem, um novo mundo se desenhava assim que fechava meus olhos. O escuro dava lugar a um espaço multicolorido ou pontilhado de brilhos e formas e esse era um lugar meu, inatingível por qualquer outro. Gosto da ideia de ter um mundo meu, esse que me acompanha diuturnamente e vai sendo instalado onde quer que eu esteja.
Lembro que quando era criança e percebia coisas que me desagradavam, procurava fazer o Jogo do Contente, tal qual Poliana, que conseguia sempre ver o lado bom das coisas, independentemente das circunstâncias. Se por um lado, ressignificar fatos como Poliana me promovia uma homeostase quase imediata, por outro eu ficava atenta para não parecer um otimismo irracional e alienado.
Assim, por vezes era sedutor, contudo, patológico e superficial lembrar de Poliana com o intuito de fugir do problema, outras vezes desafiador porque, ao contrário, mergulhava fundo no problema e me auxiliava a entendê-lo e com isso contribuía para não julgar a vida demasiado dura. Assim, tinha um mundo que era só meu e acreditava que somente eu o conhecia. E o traduzia tão fortemente em meu ser que isso contribuiu sobremaneira para as parapercepções que observaria anos mais tarde, sem quaisquer dificuldades ou estranhamentos.
Para mim tudo era possível e nada poderia me limitar. Via as coisas na natureza em movimento o tempo todo. Nada ficava estático aos olhos atentos da criança que observava o mundo com ânsia de entender o que via. Todas as cores eram reluzentes e tudo o que eu observava vibrava, tal qual reflexo do sol na estrada em dias muito quentes. Sentia que podia fazer qualquer coisa, aprender qualquer coisa ou desenvolver o que quer que eu me propusesse fazer. Era como se tivesse o ser absolutamente incorruptível, imortal como um deu. Sentia que a qualquer hora e em qualquer circunstância poderia visitar qualquer lugar que quisesse e em todos esses momentos sentia a força da vida pulsante em mim e em tudo o que eu tocava ou simplesmente observava. Sentia a força do visível, mas sobretudo do invisível.
Sentir toda essa força formando as fibras da consciência que eu tecia, me permitiu viver sem medo e com isso morar em vários lugares, vivenciar várias experiências, conhecer muitas pessoas, desenvolver diferentes trabalhos, fazer cursos de linhas de pensamento distintas, enfim, navegar usando um timão que somente eu manejava. Ante a confusão que percebia em algumas pessoas que acreditavam que eu desenvolvia tanta coisa diferente entre si, de forma desconexa, eu retornava a um lugar longe dentro de mim mesma e, em aquiescência íntima a minha própria história, percebia um fio invisível e inviolável ligando todos os passos que percorria. Dentro de minhas meditações e de tudo o que conseguira alcançar até o momento, percebi que não nutria qualquer apego aos lugares por onde já passara ou construções que levantara. Lembro de um amigo que me disse uma vez, frente as mudanças muito frequentes que ele testemunhava em minha vida: “há coisas que é preciso deixar que crie um pouco de limo”. Pausa. Definitivamente não havia áreas da minha vida em que houvera deixado criar limo. Não nessa perspectiva. Tudo era muito dinâmico. A novidade era uma constante em minha vida. O que não mudava era as frequentes mudanças. Podia sentir meu lugar sem apego as experiências vividas, porque era perfeitamente possível para mim renascer, reviver, reconstruir, criar mundos novos, já que não me sentia necessariamente vinculada, com limo criado, em qualquer lugar. Assumi, então que não sei o que é isso. Em nenhum momento de minha vida, deixei que qualquer coisa criasse limo.
Mas entendia o sentido profundo e poético de deixar criar limo! Todas as raízes que crio são apenas em meu ser, finco-as em uma dimensão que pode até deixar de ser percebida por várias consciências, exceto pela minha própria. O único solo que cultivo é a ligação comigo mesma para que eu possa perceber o outro e agir quando eu precisar atendê-lo, sem invadi-lo. Quando estou comigo mesma e sou minha única companhia, tenho a chance única e maravilhosa de saber o que mesmo me faz feliz, o que foi que deixei criar limo na memória, desde a lembrança clara e profunda e tudo o que vem junto com o mar que balança, a garça que voa, a onda que canta, o sol que aquece, a lua que encanta, o violão que ressoa, até os risos contidos e os beijos roubados, os olhares cúmplices, a música que surge, o coração que palpita, a amizade que se lembra, o abuso que se perdoa, a oração que se entoa, o amor que se constrói. O meu lugar é onde eu quero que ele seja! E quero que seja onde haja uma chance de prestar assistência para o bem e para o amor.


Luciana Fortes Farias é mestre em Engenharia Elétrica na área de Ciência da Computação/ Inteligência Artificial (UFMA). Graduada em Administração com habilitação em Análise de Sistemas. Possui experiência em Administração, com ênfase em Planejamento nas áreas de Ciência e Tecnologia, EAD, Gestão de Processo de Negócios. Desenvolve atividades voltadas a análise e desenvolvimento web e mobile, tendo registro de sistema inteligente para monitoramento ambiental utilizando biomarcadores, bem como publicações na área. Em desenvolvimento humano e saúde, exerce atividades como Consteladora Sistêmicas Familiares, Barras de Access, Biorressonância e Irisdiagnose. É estudante de Medicina na Universidad Central del Paraguay.

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