JUDICIOCRACIA" EM EXPANSÃO

GAUDÊNCIO TORQUATO
 
                
Por mais boa vontade que se tenha para entender que, em momento de aguda crise, o Poder Judiciário substitui eventualmente a toga pelo manto legislativo, no presente momento a mudança de papéis cria rachaduras na base do triângulo do poder arquitetado pelo barão de Montesquieu. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não estão funcionando a pleno vapor e os princípios da harmonia, independência e autonomia que devem inspirar seu funcionamento sofrem forte corrosão.
O Poder Executivo é submetido a intenso bombardeio por parte do Procurador Geral da República, sob aprovação do Poder Judiciário. A Polícia Federal, que se subordina ao Ministério da Justiça, faz uma montanha de perguntas ao presidente da República sem obedecer a liturgia burocrática. O Tribunal Superior Eleitoral transforma-se em corte penal.
O imbróglio se expande. O Poder Legislativo, que tem mais de 200 nomes arrolados em denúncias da Operação Lava Jato, passa a recitar a máxima latina: se vis pacem para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra). O Legislativo aplaina o caminho para formar a CPI da JBS, para a qual seria convocado o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato. Ainda na linha de tiro de guerra, o exército parlamentar prepara-se para rejeitar pedido de denúncia para investigar o presidente da República, a ser encaminhado pelo PGR ao STF.
Mas uma questão central remanesce: o STF está entrando no terreno legislativo? Não deveria apenas informar às Casas congressuais sobre suas omissões? Gilmar Mendes, por exemplo, questiona a “sanha punitiva” que estaria por trás das decisões de alguns membros do TSE, achando que o Judiciário não pode e não deve resolver a crise política. Querem tirar o presidente? Que transfiram essa decisão ao Parlamento.
A mudança de comportamento dos magistrados tem se acentuado nos últimos anos. Nos últimos tempos, o STF reposicionou-se no cenário institucional, tomando decisões de impacto, inclusive de fundo político, sem se incomodar com críticas sobre invasão do território legislativo.
A legisla­ção judicial, portanto, aparece no vácuo da legislação parlamentar. Não há, nes­se caso, transgressão ao princípio democrático de que o representante eleito pelo povo é quem detém o poder de legislar? Em termos, sim. Mas a questão pode ter outra leitura. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preceitua a Constituição, se assenta na preservação dos direitos individuais e coletivos.
Na esteira de maior participação do Judiciário no campo político, emerge o conceito de “judiciocracia”, neologismo para designar uma democracia feita sob obra e graça do Poder Judiciário. Lembre-se, também, que a tendência de maior participação dos tribunais em ações legislativas e executivas decorre da própria “judicialização” das relações sociais, fenômeno que se expressa de maneira intensa tanto em democracias incipientes quanto em modelos consolidados, como os europeus e o norte-americano, nos quais os mais variados temas envolvendo políticos batem às portas do Judiciário.
A nova arquitetura da política nacional pode ser vista sob a pers­pectiva do contencioso que locupleta as estantes judiciais. O Poder Executivo inunda canais da Justiça para ampliar e garantir suas de­cisões. O Legislativo instaura agenda de Comissões de In­quérito, ampliando frentes de luta política. O Ministério Público flagra ilícitos de toda ordem, enca­minhando farta pauta de conflitos ao Judiciário. Minorias políticas recorrem às Cortes para fa­zer valer direitos. Associações civis e esferas governativas produzem um bocado de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs). A questão é: esse novo modo de fazer política melhora a qualidade da democracia? Ou confere excessivo poder aos Tribunais, resultando em desmesurada intervenção nos conflitos políticos?
Esta é a pergunta crucial que só será respondida depois da crise.
 


Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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