GAUDÊNCIO
TORQUATO
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O velho Brasil dá
as caras. O deputado Tiririca, vestindo seu melhor figurino, o de palhaço,
apresenta o também circense Bubu, arrematando: “ô, menino lindo”. Recebe o troco
do candidato a vereador: “são seus olhos”. Jussié Galo Cego brinda os eleitores
com a pérola: “o único vereador que vai o tirar o olho. Por você”. Dito e feito:
enfia o dedo e o olho de vidro pula na palma da mão. Lima da Viola se apresenta
com seu instrumento e manda ver: “é nós”. Rafafá, de Campinas, em exagerado
gestual gay, pede o voto e arremata: “ele não promete, ele dá”. Há, até, um
incrível Binladen, que deixa no ar uma pontinha de ameaça: “ou a gente muda ou
explode Diadema”.
Eis aí um resumido
painel de candidatos a vereador em algumas praças do país. Causa surpresa? Não.
Mesmo sob regras mais rígidas – proibição de materiais em espaços públicos,
proibição de doações de recursos por empresas, tempo mais curto – a campanha
para prefeitos e vereadores ainda utiliza a carcomida modelagem composta por
desfiles de caras e bocas, a par de debates sonolentos entre candidatos. O que
significa essa encenação capenga? Nada mais que o exercício do dandismo, maneira
afetada de uma pessoa se comportar ou se vestir, ou, em outros termos, “o prazer
de espantar”, de chamar a atenção por meio de uma estética extravagante. O
dandismo, que ganhou uma boa definição do poeta francês Baudelaire, um dos
precursores do simbolismo, é a chave com que muitos contendores, Brasil afora,
procuram abrir a boa vontade dos eleitores.
A
ESTRIPULIA CIRCENSE
Um dos mais conhecidos
praticantes dessa modalidade é o ex-senador e hoje candidato a vereador Eduardo
Suplicy que, em tempos idos, nos corredores do Senado, vestiu uma sunga vermelha
sobre as calças, assumindo o papel de Super-Homem no teatrinho produzido por um
programa cômico de TV. O dândi tem vocação fatal por visibilidade. Quer aparecer
a qualquer custo. É incapaz de resistir quando o desafiam, principalmente quando
divisa a possibilidade de se tornar estrela no palco midiático. Se o
protagonista pertence ao mundo competitivo das eleições, a atração pelos
holofotes é ainda mais forte. Nesse caso, os limites da liturgia costumam ser
rompidos. Os disputantes, motivados a participar da estripulia circense, entram
na encenação farsesca, exagerando nos adereços, criando versões estapafúrdias
sobre o momento, tirando proveito das comparações, mesmo que alguns dos exemplos
habitem o território da maldade, como Osama Bin Laden, o saudita que despachou
aviões para explodir as torres gêmeas de Nova Iorque.
A vontade de aparecer
na mídia é tão obsessiva que a necessária compreensão sobre atos convenientes e
inconvenientes, normais e ridículos, se torna esmaecida na mente dos dândis.
Brandir a espada do He-Man, lutar jiu-jítsu, imitar o berro de Tarzan ao lado da
macaca Chita, assumir o papel de cantantes românticos, usar o palanque de
gêneros e, nessa campanha, de transgêneros constituem parâmetros que inspiram a
trupe. Para eles, os esquetes de efeito publicitário não ferem o que se
considera politicamente correto. O nivelamento por baixo não os afeta. Essa
turma acredita que haverá sempre um volumoso contingente de eleitores que gosta
do estardalhaço, da caricatura, da piada, mesmo as de péssimo gosto. Afinal, a
política brasileira ainda é povoada por incultos e bárbaros.
A
prática do dandismo vem desde a antiguidade. A arte da política sempre se banhou
nas águas da dramaticidade. Vejamos. Em 64 A.C., Cícero, o mais eloquente
advogado do ciclo de César, guiou-se por um manual de representação, produzido
por seu irmão Quintus Tullius, para vencer a campanha ao Consulado de Roma
contra Catilina. O roteiro sugeria modos de se apresentar e falar. Coisas
assim: “Seja pródigo em promessas, os homens preferem uma falsa promessa a uma
recusa seca.” Por nossas plagas, a arte da representação também tem sido
bastante apreciada. Jânio Quadros dava ênfase a uma gramática especial. Indagado
sobre os motivos de sua renúncia, teria dito: “fi-lo por que qui-lo”. E
caprichava na exótica estética: olhos esbugalhados, cabelos compridos, barba por
fazer, caspa sobre os ombros, sanduíches de mortadela e bananas nos bolsos, que
comia nos palanques, depois de anunciar para a massa, com ar cansado: “Político
brasileiro não se dá ao respeito. Eu, não, desde as 6 horas da manhã estou
caminhando pela Vila Maria e não comi nada. Então, com licença.” Devorava a
fruta, sob os aplausos da multidão. Era cena. Jânio havia se refestelado com uma
feijoada, tomado um pileque, dormido na casa de um cabo eleitoral e acordado
quase na hora do comício.
VISIBILIDADE, A QUALQUER
CUSTO
Portanto, não causa surpresa o
fato de que nossos políticos continuam exímios na arte de representar. Mas há
casos em que exageros foram condenados. Em 1949, o deputado Barreto Pinto (PTB)
– eleito pelo Rio, na época Distrito Federal –, fotografado de fraque e cueca
samba-canção, foi cassado por falta de decoro. Velhos tempos. Hoje, quem
critica mesuras estrambóticas pode até ganhar um processo por discriminação. O
especialista Roger Ailes, contratado por Nixon em 1968 para produzir seus
debates na TV, profetizava: “Os políticos terão de ser, um dia, animais de
circo.” Não é que acertou em cheio?
A tendência a
disseminar a palhaçada é bastante previsível diante dos fenômenos que
pavimentam a vida parlamentar: escândalos envolvendo deputados e senadores,
gestos e atitudes aéticas, propina a rodo. Na verdade, o princípio que inspira
a índole de boa fatia da representação é aparecer. Não importa como. No
Estado-Espetáculo, a visibilidade é chave-mestra da competição. Leia-se, a
propósito, o livro com este nome de autoria do sociólogo Rogér-Gérard
Scwartzenberg. Como a imagem dos atores políticos se esgarça ao longo do tempo,
muitos procuram esticar sua vida útil. E apelam para a arte dramática. Alguns
engatam a marcha do folclore; outros, a linguagem da baixaria. E assim, a
imagem vai ganhando borrões. Folclóricos, palhaços, tolos e espertinhos
capricham seus comportamentos no nivelamento por baixo. A política ainda é um
circo. Mesmo diante da arte circense em queda livre.
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Gaudêncio Torquato, jornalista,
professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter:
@gaudtorquato
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