LOBBY, DEMOCRACIA E CORRUPÇÃO

 
GAUDÊNCIO TORQUATO
      
Uma das mais recorrentes práticas descobertas no fluxo de depoimentos das Operações Lava Jato e Zelotes abriga a intermediação de interesse de grupos privados (pessoas físicas e jurídicas) junto ao Estado. Esse fato tem propiciado a conclusão dos investigadores – promotores, juízes e policiais federais – sobre as ações dos indiciados: um verdadeiro assalto ao Estado. A questão suscita um debate racional sobre o lobby, atividade ainda não regulamentada no país e apontada por alguns, entre eles advogados de acusados, como prática que teria sido realizada de forma “legítima” por alguns de seus clientes. Afinal, que limites podem se estabelecer para que o lobby não seja considerado ato abusivo e criminoso? Vejamos.
         O lobby tem como principal objetivo intermediar interesses de grupos perante a esfera pública, organismos (estruturas administrativas) e Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). Tal modalidade não é um fenômeno contemporâneo. Faz-se presente nos ciclos históricos, inscrevendo-se, inclusive, nos primeiros di­cionários de política. Rousseau, no Contrato Social, perorava sobre a oportunidade de cada cidadão participar nos rumos políticos, ga­rantindo haver “inter-relação contínua” do “trabalho das instituições” com as “qualidades psicológicas dos indivíduos que interagem em seu interior”.  Esse é, aliás, um dos fundamentos da democracia participativa, aqui entendida como o sistema que permite aos cidadãos e suas representações se livrarem da coerção para influir de maneira autônoma no processo decisório. O lobby tem relação com este conceito.
         Mas a atividade ganhou força, nas últimas décadas, em virtude da crise que assola a democracia representativa. A débâcle do socialismo clássico abriu aguda crise no campo das ideologias. A densidade ideológica da competição política tornou-se mais tênue, partidos se amalgamaram no centrão dominado pela social-democracia, parlamentos perderam vigor e as bases arrefeceram sua disposição. A representação política, amargando o efeito desses impactos, se fragmentou e os partidos de massa se transformaram naquilo que os ingleses chamam de “catch-all parties” (partidos do “agarra tudo”). Um novo tripé se formou às margens do Estado juntando a burocracia, os políticos (interessados em aumentar espaços de poder ) e os círculos de negócios. Sob o peso do desprestígio, os atores políticos viram a sociedade deles se afastar, dando lugar a uma gigantesca lacuna que passou a ser ocupada por entidades de pressão social, organizações não governamentais e associações de categorias profissionais.
         Essa nova fisionomia começou a agir de forma política, defendendo interesses de núcleos junto ao Parlamento, ao Executivo e ao Judiciário. Quer dizer, no vácuo aberto pela democracia representativa, a sociedade organizada aproveitou para exprimir suas reivindicações. Registre-se que o ponto de partida para esse novo ordenamento começa, por aqui, na Consti­tuição de 1988, que propiciou a abertura dos pulmões da sociedade, ao incentivar a formação de entidades e movimentos. O respiro fez expandir novos centros de poder, os quais passaram a exigir po­líticas públicas nos mais variados nichos temáticos. Ganha vigor, então, a democracia participativa, concebida até então por meio de três mecanismos constitucionais: plebiscito, referendo e lei de iniciativa popular.
 É nessa textura que emerge o lobby, entendido como ação em defesa de grupamentos organizados, nas áreas de gêneros, minorias, etnias ou profissões. Sob essa visão, os lobbies são justificáveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, constituem  uma atividade inserida na vida política. Esse é o lado positivo. Ocorre que seus limites éticos são rompidos quando a defesa de demandas coletivas rompe as barreiras da legalidade, ou seja, quando a res publica passa a ser apropriada, de maneira vil, por círculos no entorno do Estado. Desvirtuando-se do escopo original, transforma-se o lobby em tabuleiro de negociações espúrias, ensejando escândalos de toda a ordem, a ponto de deixar a ex-maior empresa brasileira, a aclamada Petrobras, em estado de calamidade. E assim, essa prática ingressa na banda suja da corrupção, do tráfico de influência, da manipulação e uso de estruturas governativas, resultando em ladroagem de fatias do Estado. Bobbio, em seus estudos, chegava a alertar: “a democracia é o governo do poder público em público”, apontando para um sistema que se vale do poder  manifesto, evidente, visível, em contra­ponto à coisa “confinada, escondida, secreta”. Arrematava: “Onde existe o poder secreto há, também, um antipoder igualmente secreto ou sob a forma de conjuras, complôs, tramóias.”
         Essa situação exige que o lobby seja legalizado. A partir da norma legal, será possível moldar uma forma legítima e transparente de defesa de interesses. O projeto que tramita no Congresso, há anos, carece nova avaliação à luz da realidade social e política do país. Somente o marco regulatório sobre a matéria poderá diminuirá a taxa de corrupção, eis que des­vendará o que está por trás das máscaras. Reivindicações gerais, difusas, particulares, explícitas ou latentes, passarão pela lupa da mídia. A publicidade das ações contribuirá para distinção entre o justo e o injusto, o lícito e o ilícito, o correto e o incorreto, o oportuno e o inoportuno. Lobistas ou, se quiserem, um nome mais pomposo e sem viés negativista, algo como articuladores institucionais da sociedade civil, terão identidades e representações divulgadas. Seria uma maneira de adensar o corpo de nossa democracia participativa, conferindo mais força e significado à democracia, o regime do poder visível. 
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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