O álcool traidor


por José Renato Nalini

Dentre as chamadas drogas lícitas, o álcool talvez seja a mais ruinosa. Seu consumo converte pessoas civilizadas em selvagens. Aquilo que não se teria coragem de dizer na sobriedade, é proclamado com insistência pelo embriagado. O bêbado é um corajoso. Não hesita em disparar contra seus alvos.

Há quem beba exatamente para extravasar o que sente em relação à vida e aos semelhantes. O que ficou entalado, o que se pensou e não se teve coragem de afirmar, os mais recônditos ressentimentos e complexos afloram, ganham forma e força.

O estrago está feito. Proferida a ofensa, ela se concretizou. Não se recolhe a palavra dita. É flecha disparada que muita vez atinge, certeiro e duro, o coração de quem se era o alvo e se pretendeu ferir. Mas é importante saber que ninguém atinge uma embriaguez completa, que o prive de todo o discernimento. O álcool apenas enfatiza o que já se ocultava sob uma pálida polidez, sob aquele véu diáfano da boa educação. O sopro alcoólico arremete longe esses escrúpulos. O que se diz no estado etílico é o que se queria mesmo dizer.

Conhece-se realmente a pessoa quando ela se despe das convenções e atribui à bebida o "exagero". Aí ela se mostra por inteiro. Com a sua franqueza, sinceridade, crueza e crueldade.

Quantas amizades desfeitas são atribuídas a uma bebedeira! Quantas agressões, quanta valentia, quanta desfaçatez!

Mesmo assim, o álcool é uma isca atraente, que aprisiona o mais fraco, lançando-o à arapuca onde ele tem de ser quem é. Não é o outro que surge como resultado da bebida. É o ser autêntico, sem o disfarce que um convívio forçado, mas civilizado, faz com que as pessoas se fantasiem.

Sem a roupagem do constrangimento, ao qual o sóbrio não se exporia, o bêbado mostra a verdadeira face. Irreconhecível para quem o não conhecia sem disfarce. Maldosa, porém verdadeira. Liberados os freios que as relações não embebidas no álcool preservam, tudo se torna possível. A violência verbal, a violência física, a ameaça, as ofensas, os gestos ousados de valentia.

Pobre animal humano, tão prepotente e tão ridículo, quando se entrega à miséria do alcoolismo.

José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo
 


 


 

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