O DESERTO DE HOMENS E IDEIAS

GAUDÊNCIO TORQUATO
      
           O Brasil acaba de ganhar mais dois partidos, somando agora 34 entes na moldura política. Marina Silva conseguiu aprovar no TSE a formação de sua Rede Sustentabilidade. Qual a bandeira da sigla? Diz: “Uma das questões mais urgentes da agenda é a sustentabilidade política. Dizíamos em 2010 que iríamos perder muito daquilo que havíamos ganho na economia, na inclusão social e na democracia  em função do atraso na política”. Já um grupo de empresários, médicos e advogados também conquistou um curral eleitoral, o Partido Novo, sob o número 30, cujo nome quer ser um contraponto à política “velha”. Qual o discurso da nova sigla? O velho ideário liberal: “defesa das liberdades individuais com responsabilidade”, o livre mercado, uma ação menor do Estado na economia e na vida das pessoas. Dois partidos, dois escopos, mais duas estrelas na esburacada constelação partidária. Mas,  trocando em miúdos, expressam alguma novidade? Nenhuma. 
         A paisagem política mais parece um saariano deserto de ideias. Faz tempo que a seca assola o território ocupado por nossos partidos. Faz tempo que a mesmice impera, sob a sombra de planos – alguns até eficazes, mas desmontados pelo amálgama entre assistencialismo e populismo, ausência de visão estruturante, feitos e desfeitos, verborragia e muita enganação. Para ficarmos apenas na contemporaneidade, vejamos os fatores de sucesso/insucesso de alguns governos. Fernando Henrique Cardoso garantiu dois mandatos montado no cavalo da estabilidade econômica e amparado em reformas no aparelho do Estado, cujos efeitos positivos foram se es­garçando ante a emergência de novas expectativas sociais. Lula e seu PT chegaram ao centro do poder, depois de costurar por décadas e com intransigência os fios de seus particularis­mos. Sentados na cadeira do Planalto, embriagados com o sumo do poder, partidarizaram a máquina com cargos, desfizeram traços que davam nitidez a seus perfis, particularmente no que diz à ética, sempre brandida em campanhas eleitorais.
         Com exceção das pontas radicais, os partidos se concentraram em um centrão ideológico, cada qual exercitando um palavrório próximo ao que se conceitua por social-democracia: um Estado com controles e capacidade de intervenção em um mercado livre e fortes braços sociais para cobrir as margens. Poucos se distinguem. A diferença entre eles é perceptível apenas no jogo cromático de cores e marcas. Já as oposições intensificaram uma locução crítica, dirigida mais aos adversários que em defesa de ideias.
         A pasteurização ideológica se espraia na esteira de um fenômeno conhecido como embaciamento do jogo político ou, na palavra do professor Ro­ger-Gérard Schwartzenberg, a “uniformização no cinzento”. Os partidos brasileiros circulam numa zona cinzenta, circunscrita ao arco central da sociedade, flexíveis e pragmáticos, portando o carimbo de all-catch parties (partidos do agarra tudo), como dizem os ingleses. Seu lema é: o “poder pelo poder”.
         As alternativas para construção de eixos de desen­volvimento social que, em tempos idos, eram fincadas em bases só­lidas do edifício doutrinário, são, agora, substituídas pelo dicionário da crise, cheio de pontuações sobre aumento de impostos, ajustes fiscais, projetos sociais sem saída (Bolsa Família), ondas de denúncias sobre desvios dos agentes públicos etc. A esfera política substitui as estratégias de desenvolvimento pela visão imediata e oportunista da ocupação de cargos na máquina governamental. O que faz, por exemplo, a presidente nesse momento? Chama o corpo político para negociar no balcão de recompensas.
         O momento é grave. E o que fazem os grupos partidários? Reúnem-se  nas salas e ante-salas do poder para negociar sua posição na estrutura administrativa. E a tão proclamada reforma ministerial? Ora, coisa para inglês ver. Uma quimera.  
         É bem verdade que o Brasil não é exceção na moldura da banaliza­ção da atividade partidária que se observa em praticamente todos os quadrantes mundiais. Mesmo nos Estados Unidos, onde os partidos Republicano e Democrata dominam a política desde 1852, abrigando cerca de 60% dos eleitores, cresce a tendência para o rebaixamento do discurso político. Veja-se a figura estrambótica desse agressivo Donald Trump dando as cartas entre os republicanos. Na Europa, a débàcle do socialismo real deu força aos partidos social-demo­cratas. Mas, nesse momento, muitos se preocupam em reconstruir as identidades, na percepção de que as siglas que se posicionam de maneira nítida no arco ideológico passam a recuperar poder. Daí a recente força dos partidos de direita.  
         Nessa moldura, até se compreende a névoa que encobre os partidos brasileiros. O PT está na lona, tonto com o nocaute recebido das operações que se iniciaram com o mensalão e se estenderam ao petrolão. Foi com muita sede ao pote, acreditando no preceito de L. de Crescenzo, escritor italiano: “O poder é como a droga e sempre exige doses maiores”. Conquistou es­paços, mas veja o buraco em que se meteu. O PMDB luta por alargar sua participação na máquina. E assim, a pobreza de ideias escorre pelas marés baixas da estrutura partidária. A conclusão é triste: criar partidos neste momento de profunda crise política é contribuir para expandir nosso analfabe­tismo político. E a povoar o limbo de homens e ideias. 
 
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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