Sobre a liberdade, por José Nalini

 
Giovani Pico Della Mirandola afirmava que o homem é o mais afortunado de todos os seres porque recebeu a liberdade como dom natural. O homem é a grande criação do universo e extraordinário milagre divino1. Bobbio considera a ação como resultado da liberdade, concebida como "a faculdade de cumprir ou não certas ações, sem o impedimento dos outros que comigo convivem"2.

Mas há uma pergunta recorrente na História da Humanidade: será o homem livre? "Quando dizemos que o homem é livre pela virtude da natureza de sua humanidade queremos dizer que, entre outras coisas, ele é capaz de fazer escolhas, e que suas escolhas não são totalmente dependentes ou causadas por forças além de sua consciência"3.

Há quem sustente que o homem nasce num determinado ambiente e suas características, inatas ou herdadas e tudo o que a vida lhe imprimiu dele fazem o que ele é durante a sua peregrinação terrestre. Tal é sua sina e seu destino. Sua vontade não é "livre", no sentido metafísico do termo, pois é "determinada pelo seu passado e por todas as influências a que estiveram expostos ele mesmo e seus ancestrais"4.

Se cada ser humano pode agir de forma desenvolta, independente, a vida humana é uma sequência incessante de ações singulares. Ações produzidas por quem, desde o nascimento, é livre, ou seja, "desfruta o direito de desenvolver plenamente a sua atividade física, intelectual e moral, e, nesse sentido, pertence-lhe o direito de desfrutar o produto dessas atividades"5.

A liberdade ora é assegurada, ora é restringida. Jean-Jacques Rousseau, ao justificar a necessidade do pacto social, dizia que "o homem nasceu livre e em toda a parte ele se encontra acorrentado

O que ele diria desta República, que já é a terceira no globo em população carcerária, com cerca de 700 mil sentenciados?

Liberdade tem uma dimensão sensível e exterior e tem uma dimensão igualmente sensível, mas interna. Há quem se sinta aprisionado. Pelas ambições, pelas paixões, pelos anseios insatisfeitos. Isso é próprio da condição humana. Mas há quem consiga se desapegar de tudo o que é exterior e se sinta inteiramente livre. "Somos, na realidade, atores livres naquilo que fazemos, e não meros instrumentos das diversas forças existentes no mundo - mesmo que sejamos, é claro, submetidos às leis da natureza"1. Costumo dizer que, extraídas as condições naturais que nos limitam, sobra uma imensa faixa de liberdade para desenvolvermos o nosso destino. A escolha da trajetória a percorrer nesta frágil e efêmera jornada é responsabilidade pessoal.

Acreditar-se objeto desprovido de condições de mudar de rumo, vítima do fatalismo predeterminado é uma cômoda fuga às responsabilidades ínsitas à condição de ser racional. Somos caniços, sim, mas caniços pensantes.

Por isso é que existem escravos livres e senhores aprisionados. Reféns da cupidez, do poder, da autoridade, da glória ou do reconhecimento. Reféns da paixão, do vício e da submissão aos sentidos. Exemplos não raros de superação evidenciam a possibilidade humana de escapar das malhas tenebrosas da dependência. Seja ela química, seja ela - muito mais perigosa - tecida nos labirintos do intelecto.

Sob outra ótica, nossa concepção de liberdade é focada no ambiente político. Daí a sua gradação, aferível em escalas. Desde logo se diga - e aqui a deformação jurídica - inexistir liberdade ilimitada. Onde não há lei, não há liberdade. "A liberdade - em menor ou maior grau - só pode existir onde algo é permitido e algo mais é proibido. Talvez a piada a seguir, que deve datar de antes da Primeira Guerra Mundial, possa esclarecer as coisas: ‘na Áustria, o que não é proibido é permitido; na Alemanha, o que não é permitido é proibido; na França, tudo é permitido, inclusive aquilo que é proibido; na Rússia, tudo é proibido, inclusive aquilo que é permitido"1.

Liberdade, para quem estuda ciência jurídica, é o primeiro e mais fundamental dos direitos. Pois o caput do artigo 5º da Constituição da República elenca os cinco direitos dos quais se extraem todos os outros, contidos nos 78 incisos a seguir. São eles: vida, liberdade, igualdade, propriedade e segurança.

Ocorre que vida nem sequer pode ser chamada tecnicamente de "direito". Vida é pressuposto à fruição de direitos. Tanto que podemos substituir o verbete "direito" pela expressão "bens da vida". E aí, como o pacto fundante não tem palavras inúteis, nem resulta de mero acaso a ordem de enunciação dos direitos, tem-se a liberdade como o primeiro e mais essencial direito.

A experiência da privação da liberdade causa mácula indelével para o inocente, que não poderia ser subtraído ao convívio e é vítima de prisão ilegal. Por isso o empenho da Justiça Paulista ao implementar o projeto "Audiência de Custódia", que acerta o passo da República Federativa do Brasil com outras democracias já consolidadas e atende ao compromisso firmado no Pacto de São José da Costa Rica.

Em estágio civilizatório superior, a prisão por uma hora já representa sanção considerável, pois evidencia o apreço que o ordenamento confere ao valor liberdade. Não poderíamos conviver com situações lamentáveis de exacerbação do castigo segregatório e passamos a honrar um tratado que assinamos espontaneamente, o que nos obriga a respeitar o nosso próprio pacto federativo. Desde 1988, a prisão em flagrante de qualquer pessoa deveria ser imediatamente comunicado à autoridade judiciária competente para apreciar a legalidade da privação da liberdade.

Demos um salto qualitativo na Democracia Brasileira. Esperamos que isso estimule a prosseguir na imensa e infindável tarefa de implementar o verdadeiro Estado de Direito de índole Democrática, vocação que assumimos formalmente desde 5.10.1988. *José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça

(Footnotes)

1 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni, Discurso sobre a Dignidade do Homem, Lisboa, Edições 70, 1989, p.56/70.
2  BOBBIO, Norberto, Teoria Geral da Política: a Filosofia Política e as lições dos clássicos, Rio de Janeiro, Elsevier, 2000, p.101.
3 KOTAKOWSKI, Leszek, Pequenas Palestras sobre Grandes Temas, São Paulo, Editora Unesp, 2009, p.79/80.
4 Von MISES, Ludwig, Ação Humana, São Paulo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, p.74.
5 DUGUIT, Léon, Fundamentos do direito, São Paulo, Ícone, 1996, p.11.
1 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Discurso sobre a origem e os fundamenos da desigualdade entre os homens, Editora Universidade de Brasília, Editora Ática, São Paulo, 1989, p.13.
1 KOTAKOWSKI, Leszek, op.cit., idem, p.81.
1 KOTAKOWSKI, Leszek, op.cit., idem, p.82.

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