A servidão consentida, por José Renato Nalini

 
O Estado é uma sociedade de "fins gerais". O que significa isso? É que o Estado tem abrangência suficiente para acolher, em seu interior, as demais sociedades chamadas de "fins particulares" e, ainda os indivíduos desvinculados de qualquer grupo. Dentro do Estado, todos devem ter a oportunidade de se desenvolverem em plenitude, atingindo os limites de suas potencialidades.
Essa é uma visão singela do Estado, nascido como instrumento posto à disposição das pessoas, para que elas não sejam impedidas de alcançar seus objetivos. Sozinho, o indivíduo é frágil. O grupo o fortalece. Mas o Estado é mais forte ainda. Para domá-lo, deve ser concebido qual mero instrumento de fazer as pessoas felizes. O Estado é sempre meio e nunca pode se converter em finalidade.
É lícito, em teoria, pensar se em alcançar um nível tal de civilização, que o Estado viesse a se tornar desnecessário. Isso quando a população adquirisse um grau adequado de autogestão, a pressupor uma comunidade capaz de conviver em harmonia, sem o freio do poder e sem o monopólio da violência exercido pelo governo. Por óbvio, estamos ainda muito longe desse estágio. Há mesmo quem pense que tenhamos regredido em lugar de se aproximar do plano idealizado. É que hoje o Estado cresceu demais, assenhoreou se de múltiplas tarefas, tornou se insubstituível. Há uma dependência extrema das pessoas em relação ao governo. A sensação é a de que ele se compraz disso e estimula a servidão consentida. Nítidos os sintomas de tal situação. Desapareceu o mérito. Tudo depende das relações, das indicações, do compadrio, do favoritismo, da fidelidade a algumas causas de interesse escolhidas pelo detentor do poder. Não se prestigia o trabalho. Os direitos precisam ser usufruídos sem qualquer contraprestação. Se um dia o pobre se esforçou para conseguir a sua casa, pagou religiosamente as prestações do terreno, comprou com sacrifício o material e serviu se de mutirão para edificar o lar, hoje a moradia tem de ser entregue pronta e equipada para um usufruto livre de obrigações. O Estado onisciente, onipotente e onipresente normatiza tudo. Interfere em todos os aspectos da vida pessoal e o indivíduo parece confortado e feliz por não ter de investir em nada. Principalmente, investir em si mesmo. Em seu crescimento interior, como pessoa! Libera se da obrigação de se responsabilizar pelas opções feitas quando ocorrem as eleições. Estas são decididas pelos marqueteiros, desde que haja tempo suficiente de televisão para "vender o produto". Daí a avidez com que se disputa um segundo ou um minuto, com total desapreço à lisura das alianças. Para um povo infantilizado, que talvez se pretenda ver a cada dia mais servil, a solução de um Estado todo poderoso é uma solução, é uma receita confortável, mas esterilizante do sonho de uma verdadeira cidadania. E sem cidadania protagonista, como implementar a Democracia Participativa prometida pelo constituinte?
*José Renato Nalini é desembargador presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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