Por Carlos Dantas Filho*
A audiência de custódia completou, recentemente, dez anos como um dos instrumentos mais importantes para a garantia de direitos fundamentais no sistema de justiça criminal brasileiro. Infelizmente, apesar de seus inegáveis avanços, ela tem sido alvo de críticas e propostas de reformulação que, se implementadas, podem representar um retrocesso preocupante.
Para dar um contexto, a audiência de custódia foi instituída no Brasil em 2015, após um acordo entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O procedimento exige que toda pessoa presa em flagrante seja apresentada a um juiz em até 24 horas, garantindo que a legalidade da prisão seja avaliada e que eventuais violações de direitos, como tortura ou maus-tratos, sejam identificadas. Além disso, o magistrado decide sobre a necessidade de manter a prisão provisória ou conceder liberdade, aplicando medidas cautelares alternativas quando cabíveis.
Felizmente, os números mostram o impacto positivo dessa medida. Desde sua implementação, mais de 1,7 milhão de audiências foram realizadas, com cerca de 39,4% dos casos resultando em liberdade provisória. Isso significa que centenas de milhares de pessoas puderam responder ao processo em liberdade, evitando os efeitos devastadores do encarceramento precoce. Para um país que possui a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 880 mil presos, esse é um avanço significativo.
Falando sobre seus benefícios, a audiência de custódia trouxe celeridade a um sistema que, antes de 2015, levava em média 120 dias para que um preso tivesse seu primeiro contato com uma autoridade judicial. Hoje, em 24 horas, o cidadão tem a oportunidade de ser ouvido por um juiz, que pode verificar a legalidade da prisão e garantir que seus direitos não foram violados. Além disso, o procedimento tem sido fundamental para combater o encarceramento em massa, um problema crônico no Brasil.
A audiência de custódia também cumpre um papel essencial na proteção da integridade física dos presos. Desde 2015, foram registrados relatos de tortura ou maus-tratos em 7,6% dos casos, um número alarmante, mas que poderia ser ainda maior sem a intervenção imediata de um juiz.
Lamentavelmente, nos últimos anos, as audiências de custódia têm sido alvo de ataques por parte de setores que as acusam de promover a “soltura indiscriminada” de criminosos. Essa narrativa, no entanto, ignora o fato de que a liberdade provisória é um direito constitucional, baseado no princípio da presunção de inocência.
Esses projetos, se aprovados, podem agravar a superlotação carcerária e violar direitos fundamentais. Além disso, há o risco de que as audiências de custódia percam sua essência, tornando-se meros trâmites burocráticos sem a devida análise individualizada de cada caso. Como bem lembrou Rodolfo Laterza, presidente da Adepol, o procedimento corre o risco de se transformar em um “meio mecanizado de soltura”, distanciando-se de seu propósito original de proteger a integridade e os direitos dos presos.
Como profissional do Direito, acredito que a solução não está em restringir as audiências de custódia, mas em fortalecer o sistema de justiça como um todo. Precisamos investir em medidas cautelares alternativas, como a prisão domiciliar e o monitoramento eletrônico, que são menos danosas e mais eficazes do que o encarceramento provisório. Além disso, é essencial combater a cultura do “prende e solta”, que muitas vezes resulta da falta de investigação policial adequada e da lentidão do sistema judiciário.
Felizmente, a audiência de custódia já demonstrou seu valor ao longo desses dez anos. Ela é um instrumento que protege os direitos dos cidadãos, combate abusos de autoridade e reduz o encarceramento desnecessário. Cabe a nós, defensores da justiça e dos direitos humanos, garantir que ela continue cumprindo seu papel, sem sucumbir a pressões populistas ou a propostas que colocam em risco conquistas tão importantes.
Em um país marcado por desigualdades e violações de direitos, a audiência de custódia é um farol de esperança. Que possamos defendê-la com unhas e dentes, para que continue iluminando o caminho em direção a um sistema de justiça mais justo e humano.
*Carlos Dantas Filho, advogado criminalista e pós-graduando em Direito e Processo Penal pelo IDP de Brasília
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