A Discussão da Taxa de Juros e os Atalhos Cognitivos do Debate Econômico Brasileiro

 Gabriel Brasil, Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestre em economia política internacional pela Universidade de São Paulo. (E-mail: gabrielchbrasil@gmail.com)


Nas últimas semanas, o debate econômico brasileiro foi quase inteiramente tomado pelos desdobramentos da disputa entre o governo Lula e o Banco Central (BACEN), na pessoa do seu presidente Roberto Campos Neto.  Antecipando um crescimento da economia em níveis limitados para este ano, Lula e seus aliados se aproveitaram da notória proximidade de Campos Neto dseu antecessor, o ex-presidente Jair Bolsonaro, para atribuir à sua gestão as frustrações da economia. Trata-se de uma estratégia política relativamente previsível, mas com efeitos econômicos indesejados para o país.

Em primeiro lugar, cabe notar que a literatura econômica é incontroversa sobre a desejabilidade de Bancos Centrais dotarem de independência operacional e política. Grosso modo, isso favorece o combate à inflação, e blinda a instituição de interferências curto- -prazistas que não são bem-vindas. Apesar de fenômeno recente no Brasil, empiria preliminar sugere que a independência formal do BACEN pode já ter entregado resultados positivos – notoriamente no ano passado, quando o banco subiu suas taxas básicas de juros para combater a inflação a despeito de se tratar de um ano eleitoral, prejudicando as pretensões políticas de curto prazo de Bolsonaro. 

Uma ressalva importante aqui diz respeito à atuação política pessoal de Campos Neto nos últimos dois anos – discutida por este autor em artigo de abril de 2021 neste mesmo boletim (1).  Conforme amplamente repercutido pela imprensa, inclusive nas últimas semanas, o atual presidente do BACEN manteve atuação bastante controversa do ponto de vista institucional na medida em que nutriu relações demasiadamente próximas do núcleo político de Bolsonaro e dos seus aliados, inclusive durante o período eleitoral. Trata-se de atitude reprovável e incompatível com o que se espera de alguém na sua posição – especialmente à luz do novo paradigma de independência formal da instituição. No entanto, tal postura, apesar de indesejável, a princípio não serve de evidência suficiente para se questionar a política monetária atualmente praticada pelo BACEN. Vale lembrar que, pelo sistema de metas adotado pela instituição, as taxas básicas de juros são resultado de interação complexa entre a capacidade de rolagem da dívida do tesouro nacional, a confiança dos investidores e os parâmetros dos modelos econométricos do BACEN acerca do desempenho da economia real. Ademais, não é exclusividade do banco central brasileiro a manutenção de taxas elevadas nos últimos meses, com tal fenômeno se reproduzindo na maioria dos outros países emergentes e também em economias desenvolvidas, na esteira dos severos choques econômicos que o mundo viveu nos últimos anos (como a guerra na Ucrânia, as mudanças climáticas e os persistentes desafios impostos pela pandemia). 

Lula e seu ministro da Economia, Fernando Haddad, tomaram posse em janeiro com razoável prestígio político, inclusive internacional, mas sem o benefício da dúvida do mercado financeiro, sobretudo os agentes locais. É verdade que alguns atores daqui têm mantido postura de má vontade junto ao governo atual em razão das suas preferências ideológicas, mas também é verdade que outros o fazem em razão de certo trauma com relação à política econômica adotada pelo último governo do partido de Lula, o PT. Foi sob sua gestão, afinal, que o Brasil viveu uma das piores recessões econômicas da sua história, entre 2015-16, gatilhada principalmente por uma política fiscal demasiadamente expansionista combinada com uma política monetária inadequada e pouco independente – um combo que representa um caso clássico de risco político.

Risco político, afinal, é medido por variáveis que incluem, além dos níveis de intenção e de capacidade de certos atores (sobretudo governamentais) de introduzir medidas negativas para a economia, a análise de precedentes – isto é, a ponderação a respeito do comportamento passado dos formuladores de política no presente. Para o mercado financeiro, o risco político sob Lula é elevado porque, embora existam evidências razoáveis acerca da sua intenção e da sua capacidade de adotar políticas responsáveis, há  um precedente traumático associado ao seu partido que também precisa ser levado em conta.

 Isso significa que as medidas do governo tendem a ser recebidas com ceticismo, sem a ajuda das profecias autorrealizáveis recebida por aquelas implementadas por governos mais benquistos pelos principais agentes econômicos. Nesse contexto, seria inteligente, da parte do governo, trabalhar em prol da apaziguação, e não do confronto, junto à principal instituição econômica independente do país. Ao questionar a política monetária do BACEN, o governo coloca emxeque não apenas a independência da diretoria e do seu presidente, mas também a robustez dos seus modelos e a competência do seu corpo técnico. Trata-se de credibilidade difícil de se construir, e mais ainda de se recuperar. Mais do que isso, trata-se de uma iniciativa que vem com um custo direto elevado para o próprio governo, na medida em que a batalha pública assusta investidores e diminui ainda mais a sua disposição para financiar a crescente dívida do Brasil – no limite, impactando a própria curva de juros. 

Cabe criticar também o argumento propagado por certos aliados do presidente Lula, de acordo com o qual a diretoria do BACEN não é formada por agentes eleitos pela população, e que, portanto, não deveria ter a capacidade de influenciar de forma significativa os rumos da economia do país. Trata-se de notório analfabetismo democrático, que desconsidera a importância da qualidade e da independência das nossas instituições, e que ignora, convenientemente, o fato de que a diretoria do BACEN é formada por quadros indicados por um governo eleito e aprovados por um Senado igualmente legítimo.

A inflação é um problema crônico no Brasil. É resultado, entre outros fatores mais ou menos complexos, de gargalos de produtividade significativos e nunca endereçados completamente. Para piorar, trata- -se de um problema que afeta desproporcionalmente a parcela mais pobre da população, cuja renda é desprotegida dos aumentos dos preços, ao contrário das classes mais ricas, cujo capital na maioria das vezes conta com a proteção (e os vantajosos rendimentos) dos títulos pós-fixados. Do ponto de vista socioeconômico, o combate à inflação precisa ser uma prioridade, e não deve ser tratado como objetivo secundário da política econômica (atrás, por exemplo, do crescimento a qualquer custo). 

A busca por atalhos para o endereçamento dos nossos problemas tem sido comum no país nos últimos anos. Da direita à esquerda, governos de ocasião se recusam, com indesejável frequência, a patrocinar medidas impopulares, porém necessárias – como a introdução de lockdowns durante a pandemia ou corte de gastos em meio à alta da inflação – e, ao invés disso, implementam um combo formado por críticas severas e pessoais aos que advogam por tais medidas e um negacionismo com relação à ciência que serve como base para elas. 

É bastante improvável que, com tal postura, possamos superar nossos grandiosos desafios atuais, inclusive de coesão social. Ao adotar tom belicoso frente a outras instituições, atores políticos colaboram para a manutenção de elevada animosidade no país. Esta, além de indesejada para o bem-estar da  sociedade, também tende a ter impactos econômicos negativos, na medida em que contribui para instabilidades políticas frequentes.

O governo federal tomou posse com o slogan “União e Reconstrução”. Trata-se de feliz escolha de palavras, que representam uma agenda bem-vinda e oportuna para o país após anos de retrocesso – democrático, institucional e, no limite, dos nossos indicadores socioeconômicos. No entanto, uma agenda econômica centrada – ao menos no momento – em uma batalha voluntarista e pouco amparada por evidências contra as taxas de juros do BACEN vai na direção oposta, e precisa ser revista o quanto antes. 

(1) BRASIL, G. A independência do Banco Central e as atividade políticas da sua diretoria. Informações Fipe, n. 487, p. 29- 31, abr. 2021. Disponível em: https://downloads.fipe.org.br/ publicacoes/bif/bif487.pdf. Último acesso: 15 fev. 2023.

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