"Retreinamento" da PM anunciado por Doria desvia o foco do problema

Por Ernesto Puglia Neto e Marcelino Fernandes da Silva

Retreinar o policial militar é a solução? Segundo os melhores dicionários da língua portuguesa, retreinar é treinar novamente.
As cenas de violência policial que têm sido noticiadas recentemente já têm um culpado: os comandantes da Polícia Militar!
Pelo menos aos olhos do governador do estado, João Doria, que anunciou o programa Retreinar, que se iniciará “pelo Comando”, “no QG” e atingirá todos os policiais militares do estado. Segundo o anúncio, em “15 ou 20 dias” o treinamento, ou melhor, retreinamento, chegará “na ponta da linha”, embora não tenha sido explicitada qual será a estratégia para disseminar um treinamento para mais de 80 mil pessoas, distribuídas em 645 municípios do Estado, e que diminua as poucas e indesejadas cenas de não-conformidade que temos visto.
Uma dica ficou clara no anúncio: serão realizadas reuniões! Primeiro com os coronéis, depois com os tenentes-coronéis, majores, capitães, tenentes e sargentos. Ou seja, os comandantes do efetivo. Pela lógica do governador, esses são os responsáveis pelo que está acontecendo.
Seriam reuniões com o próprio governador, com broncas no estilo da que foi dada em um coronel, num evento do QG, só pelo fato de o oficial, por ordem superior, estar anotando a fala do governador no celular? Ou seriam reuniões mais amplas, como um comício em que o governador perdeu a compostura e chamou os militares aposentados de vagabundos?
A dúvida é pertinente, pois sabemos que a própria Polícia Militar já havia programado um treinamento para os tenentes, que está acontecendo na Academia do Barro Branco. No treinamento de uma semana, 50 oficiais, por vez, passarão por aulas sobre Direitos Humanos, Policiamento de Choque, Polícia Judiciária, Comunicação Social, Estudos de Caso entre outros temas.
Se tomarmos por base o anúncio feito pelo governador, não se trata dos mesmos cursos, pois, caso fossem, a 50 policiais por semana, seriam necessárias mais de 1.600 semanas (ou quase 31 anos) para passar todo o efetivo.
Paralelamente a isso, soubemos que estão sendo gravadas videoaulas sobre diversos assuntos. Seria essa a estratégia do governador: fazer reuniões com os coronéis e outros líderes da Instituição e depois exibir videoaulas para os demais integrantes?
Seja qual for a estratégia, não custa lembrar ao nosso mandatário máximo estadual que estamos falando de um tema extremamente complexo, que extrapola o mero “conhecimento” sobre o que é certo; conhecimento esse que certamente já é de domínio de cada policial!
O que temos hoje é o seguinte quadro: um efetivo de colaboradores que ganha mal e que por isso faz horas-extras constantemente para equilibrar seu orçamento; que em razão das horas-extras realizadas está cansado e estressado; que tenta acertar a qualquer custo e resolver problemas que nem sempre são da sua competência, e está desmotivado pelo fato de não ter reconhecida sua autoridade legal para resolver aquilo que está em sua alçada; que recebe mensagens ambíguas de seu mandatário maior; e que, em razão desses fatores, está cometendo não-conformidades em sua atuação!
A solução para esse quadro, segundo o governador João Doria, é um retreinamento!
Treinar sempre é importante. Talvez por isso, a Polícia Militar mantenha, há décadas, um programa de Atualização Profissional anual, em que o policial militar, de todos os postos e graduações, se afasta um determinado tempo do serviço operacional, para se atualizar em normas e procedimentos. Ou seja, o que o governador quer que a polícia faça, ela já faz, sem a interferência ou determinação dele!
Falando em interferências, o governador propaga, quase que diariamente, ao falar sobre a pandemia, que se deve ouvir os técnicos. Mas, por ser uma doença nova, todos os técnicos (médicos e cientistas) estão em constante pesquisa para sugerir a melhor saída, como verdadeiros heróis na ponta da linha. Porém, quando se trata de segurança pública, a ciência e os técnicos são ignorados, como fez no caso de Paraisópolis, afastando policiais sem ouvir o corregedor da PM que apurava o caso. E como fez agora, sem ouvir os policiais militares.
Seria magnífico se o governador consultasse os técnicos – os policiais militares – e propusesse algo inovador, que fugisse ao tradicional ambiente da sala de aula. Se ele propusesse um programa de treinamento humanizado, que permitisse ao colaborador recuperar sua saúde física e mental, além de sua autoestima. Um treinamento comportamental, que atingisse o mais importante dos 3 aspectos da chamada competência, que é a atitude.
Mas, parece-nos que a proposta vai seguir a linha do treinamento à distância, complementado por reuniões presenciais. Algo que a ciência não recomendaria para um caso como esse!
O governador, antes de tomar sua decisão de afogadilho, talvez devesse ter consultado seus assessores, ou como ele gosta de chamar, os técnicos. Muito provavelmente, se ele tivesse falado com o Secretário-Executivo da Polícia Militar, na Secretaria de Segurança Pública, o Cel Álvaro Batista Camilo, ou utilizado o serviço de inteligência da PM, que se diga é um dos melhores do país, o resultado tivesse sido diferente. Ele poderia, ainda, ter consultado o próprio Comandante Geral da PM, o Cel PM Fernando Alencar Medeiros, um dos mais conceituados e reconhecidos “técnicos operacionais” que a Polícia Militar tem!
Mas fiquemos com cargo político, criado pelo próprio governador, para tratar de assuntos da Polícia Militar. O secretário executivo, Cel Camilo, quando Comandante Geral da PM, teve a oportunidade de conhecer trabalhos muito profícuos de mudança comportamental. Ele mesmo, quando no comando, participou de um treinamento comportamental em imersão, voltado aos 61 coronéis da Polícia Militar. Nada de aula, nada de vídeo, somente atividades de mudança comportamental, que ressaltavam competências como a liderança, a comunicação e o relacionamento interpessoal.
Ainda como Comandante Geral, Camilo teve a oportunidade de participar, como palestrante, de dois treinamentos comportamentais: um voltado aos alunos oficiais que se formavam e assumiriam funções de Comando; e outro voltado aos alunos oficiais que ingressavam na Instituição, dentre eles o seu próprio filho. O mesmo coronel Camilo criou o “Café com o Comandante”, programa que é um sucesso, que valoriza o policial militar e que foi copiado pelo programa chamado “policial nota 10”, do qual os policiais reclamam por terem que se deslocar ao Palácio dos Bandeirantes e ficar horas esperando o governador, só para fazer propaganda de governo.
Se o Secretário Executivo tivesse sido consultado, utilizado o Estado Maior da PM para estudar e propor uma solução, e levado em conta a sua experiência como Comandante Geral, acreditamos que a proposta seria diferente e possibilitaria recolocar nos eixos o comportamento dos policiais militares. Como foi exposto, exemplos disso não faltam.
Diversos treinamentos comportamentais foram colocados em prática, ao longo da última década, em várias unidades da Polícia Militar, gerando resultados extremamente satisfatórios. Praticamente todos esses treinamentos estão relatados, alguns, inclusive, em forma de trabalhos monográficos de mestrado ou doutorado. Ou seja, com evidências científicas que corroboram sua eficácia.
Para saber disso, o governador só precisava ter se informado, perguntado aos técnicos. Mas, se fizesse isso, não poderia ter anunciado que o programa se iniciaria e terminaria em um mês. Mais ainda: ao adotar estratégia diferente da anunciada, estaria implícito o reconhecimento a todos os problemas que citamos e que afetam os policiais militares, atualmente.
Seria necessário concordar que o efetivo está doente psicologicamente. Que sua saúde mental está no limite e que o índice de suicídio 5 vezes maior que o do restante da população é um sinal evidente dessa doença.
Seria concordar que o efetivo está cansado e estressado, trabalhando em jornadas cada vez maiores, em atividades extras regularmente oferecidas pelo próprio estado, por meio de convênios com os municípios ou através da famigerada DEJEM. Seria admitir que o salário está baixo e que todas as promessas feitas pelo então candidato João Doria têm se provado inverdades, falácias, que agora terão as desculpas da pandemia para seu não cumprimento.
Seria admitir que o policial militar é constantemente desvalorizado, diminuído em suas funções, entre outras razões, pela não aplicação de um instituto legal chamado Termo Circunstanciado de Ocorrência, que, além de valorizar a autoridade do policial militar que está na ponta da linha, ainda economiza dinheiro público e melhora o atendimento à população (ver recomendação conjunta PGJ-CGMP Nº 03/2020, do MPE do Estado de Pernambuco).
Por fim, seria preciso admitir que, com suas falas e atos, o governador João Doria está enviando mensagens ambíguas ao efetivo policial, como quando afirmou categoricamente durante a campanha que “a partir de 1º de janeiro, a polícia vai atirar para matar!” ou pela criação de BAEP, os Batalhões de Ações Especiais de Polícia, que têm como missão a repressão.
A medida anunciada ainda traz um fator extremamente prejudicial à imagem de uma das melhores polícias do Brasil – como fala o próprio Governador. Ela generaliza um fato que é exceção. O erro na polícia militar é a exceção! O número de não-conformidades é infinitamente menor que o das ocorrências bem atendidas e com resultado desejável. Menor até que o número de ocorrências em que o policial militar expõe a sua própria vida, sacrificando-a, em alguns casos, em nome de seu juramento.
Se o governador quisesse realmente reduzir as não-conformidades, ele deveria agir para diminuir as condições que levam os policiais a cometerem essas não-conformidades. E não falamos somente de cumprir as promessas de campanha, que trariam uma melhora na qualidade de vida dos profissionais da segurança pública, mas também agir como Chefe do Executivo e minimizar as condições que levam ao cometimento de crimes, como o desemprego da população, por exemplo.
Mas não! A escolha do governador foi estabelecer um retreinamento, anunciado às pressas e sem preparação prévia, jogando a culpa na Polícia Militar, principalmente em seus comandantes nos diversos níveis, que são, na verdade, uma das vítimas da má gestão realizada na área da Segurança Pública! Uma pena que a outra grande vítima dessa má gestão, que é a população, continuará penalizada e continuará lidando com os efeitos das péssimas condições de trabalho impostas aos policiais militares, que continuarão podendo redundar em não conformidades!

  • Ernesto Puglia Neto é Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo e ex-Diretor de Polícia Comunitária e de Direitos Humanos (2016/2017). É Secretário-Executiva da DEFENDA PM

  • Marcelino Fernandes da Silva é Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo e ex-Corregedor da PM (2017/2020). É associado da DEFENDA PM

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