25 anos depois, livro dá voz ao filho dos donos da Escola Base

Marta Teixeira | 29/03/2019         
"Falar sobre o caso da Escola Base é mais do que um exercício de memória, é uma obrigação ética". A frase é a primeira usada pelo jornalista Emílio Coutinho para explicar a importância que atribui à edição do livro "O Filho da Injustiça". 

Crédito: Divulgação
Ricardo Shimada, filho dos proprietários da escola, conta como sua vida foi afetada pelos acontecimentos
 
A obra será lançada ainda este ano e é sua segunda sobre o assunto -  ele também é autor de "Escola Base - Onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira" -, mas, tem um diferencial fundamental: foi escrita a quatro mãos com Ricardo Shimada, o filho do casal de donos da escola. Vinte e cinco anos depois, o rapaz revisita suas lembranças e narra como sua vida foi transformada por tudo o que aconteceu. 
 
Ao resgatar seu passado, Shimada espera que o livro tenha um efeito em outras pessoas. "Meu desejo não é apenas relatar os acontecimentos que marcaram a minha vida, mas acima de tudo poder influenciar de forma positiva as pessoas que lerem esses escritos", escreve ele na introdução do livro. 
 
O caso da Escola Base é um dos maiores escândalos do jornalismo brasileiro. Em março de 1994, seis pessoas, entre elas o casal proprietário da escolinha infantil, foram acusadas por duas mães de abusarem sexualmente de seus filhos. O caso chegou à imprensa, que divulgou e explorou o assunto confiando apenas nas declarações das mães e do delegado responsável pela investigação. Tempos depois, o inquérito foi arquivado por falta de provas, mas o estrago já estava feito. 
 
O Portal IMPRENSA conversou com Emílio Coutinho sobre o livro, o desafio técnico de escrever a quatro mãos e a lição que essa história deixou para o jornalismo. "Acredito que esse caso deveria ser recordado diariamente nas redações, para que nós, jornalistas, sempre reflitamos nas consequências, positivas ou negativas do nosso trabalho", diz o autor.
 
Leia abaixo sua entrevista ao Portal:
 
Como dimensiona a importância desse livro para o jornalismo?
Falar sobre o caso da Escola Base é mais do que um exercício de memória, é uma obrigação ética. Vivemos na sociedade da informação rápida, na qual é possível ficar sabendo de acontecimentos em tempo real que estejam ocorrendo em qualquer parte do mundo. Isso é um grande avanço para a comunicação, não há dúvida. Entretanto, esse excesso de informações pode ser um risco também, ao nos fazer esquecer o que já passou. Muitas vezes, o passado é atropelado pelo presente, e é aí que se tende a repetir os erros cometidos lá atrás. Acredito que esse caso deveria ser recordado diariamente nas redações, para que nós, jornalistas, sempre reflitamos nas consequências, positivas ou negativas do nosso trabalho.
 
Você já conhecia bem o caso por causa de seu livro anterior, a produção dessa nova obra mexeu com você? 
A história desse novo livro surgiu quando conheci o Ricardo Shimada pessoalmente, em 2016, após ter lançado meu primeiro livro. Depois de conversarmos bastante sobre o caso, ele manifestou o desejo de contar a história sob o ponto de vista dele. Eu achei ótima a ideia e me ofereci para ajudá-lo. Decidimos então escrever a quatro mãos. No  livro anterior, contei o que vi sobre as vítimas do caso Escola Base. Já nesse, eu tive de fazer o exercício de vestir a pele do Ricardo e tentar sentir tudo o que ele sentiu antes, durante e depois do caso. A história é dele, eu estou ali como um mero auxiliar. Mas gostei muito dessa parceria. Eu me sinto como parte de sua família e isso me facilitou muito para obter as informações para o livro. Por outro lado, quanto mais me aprofundo nessa história, mais vejo como as consequências de uma notícia mal apurada podem ser terríveis e eternas.
 
Quais as principais dificuldades para realizar esse projeto?
Inicialmente, foi ajudar o Ricardo a se lembrar de alguns detalhes de sua vida. O livro não se atém ao caso da Escola Base, pois quisemos contar a história da sua vida antes mesmo da escola existir. A ideia foi mostrar como ele tinha uma vida normal em família até o momento em que o caso estoura e toda a sua rotina, planos de vida e visão do mundo são abalados. Tivemos vários encontros no qual ele foi me contando o que lembrava. Depois, ele redigiu um calhamaço de umas 60 páginas no qual tentou reunir tudo o que conseguiu recordar. Unimos esse material às entrevistas, fui atrás de fotos, documentos e algumas outras informações que faltavam. Então, trabalhei para deixar esse material de forma agradável, seguindo uma lógica histórica. Foi assim que produzimos o livro. Não foi um trabalho solitário, como no meu livro anterior, mas uma escrita compartilhada entre nós dois. Como o livro é em primeira pessoa, tive de me moldar a um estilo que fosse compatível aos escritos que ele me enviou. Foi um esforço que fiz, mas que me ajudou também a praticar um novo modo de escrever. Que fique claro que a autoria é dupla. 
 
Quais as principais lições do caso da Escola Base para o jornalismo?
Uma das principais lições que se pode tirar está na essência do jornalismo: apurar e desconfiar. Nunca devemos acreditar plenamente em uma fonte, devemos questionar sempre, sobretudo em casos de graves denúncias. Um bom exercício em alguns casos, como os de denúncia, é se perguntar: quem sai ganhando se eu publicar essa acusação? Será que estou sendo precipitado? Uma frase que ouvi outro dia diz mais ou menos isso: "É melhor ser o último a acertar, do que o primeiro a errar". É bem isso mesmo! Todos somos factíveis a erros, e inclusive acredito que a maioria dos jornalistas que cobriram o caso não tiveram a intenção de prejudicar essas famílias, mas as consequências foram reais e não se pode voltar atrás depois que uma notícia mal apurada é publicada. As vítimas do caso Escola Base perderam tudo: dinheiro, casa, sonhos, paz e até mesmo o direito de viver como pessoas normais. Digo isso, pois algumas das vítimas que entrevistei para meu primeiro livro me disseram que até hoje tentam se desvincular do caso, porque sempre que alguém descobre elas são vistas com olhares de desconfiança: "Será que eles são inocentes mesmo?". Mesmo o caso tendo sido arquivado por falta de provas, há quem desconfie da inocência dos donos da escola. E é aqui que nós vemos o poder que nós jornalistas temos, o de construir ou destruir vidas e reputações. Por isso, todo cuidado é pouco.  
 
A imprensa, de maneira geral, aprendeu com a lição? 
Boa parte da imprensa já é mais cautelosa em casos como esse. Em muitas matérias, os termos "pedófilo", "estuprador", "assassino", "bandido" são substituídas por "suspeito". O jornalismo aprendeu que os únicos que podem julgar uma pessoa são os agentes do poder judiciário. Por outro lado, ainda há o chamado jornalismo sensacionalista, que deixa a ética de lado e criminaliza as pessoas por delitos que muitas vezes não cometeram. Existem casos recentes que mostram como até mesmo a polícia pode errar. Lembro o caso do Leonardo Nascimento, jovem carioca que em janeiro deste ano foi preso injustamente sob a acusação de ter matado outro jovem. Uma semana depois, a polícia reconheceu o erro e soltou Leonardo. Fico imaginando tudo o que ele viveu durante essa semana na prisão. O que deve ter passado na cabeça dele? Como foi tratado na prisão? E se ele tivesse sido morto ou se suicidado? Por ser maior de idade, sua imagem e nome completo figuraram nos principais meios de imprensa do país e ainda é possível encontrar as notícias que o acusam pelo assassinato. Não duvido que a vida dele também tenha mudado completamente e muitos tenham se afastado dele por causa do noticiário. Está aí uma pessoa com a qual eu gostaria de conversar. Meu desejo é convidar quem trabalha com notícias do mundo policial a refletir sobre quais informações realmente deveriam ser divulgadas. No caso da Escola Base foram publicados nos jornais e na televisão os nomes completos, endereços residenciais e da escola e a imagem dos acusados. Resultado, a escola foi depredada e saqueada, o muro da casa de uma das proprietárias foi totalmente pichado com xingamentos e ameaças, os adultos acusados passaram por humilhações e sofrimentos físicos e psicológicos. Tudo isso poderia ter sido diminuído se os jornalistas tivessem tido mais cuidado ao selecionar as informações que seriam divulgadas. É importante falar sobre todos os tipos de crime, faz parte do papel da imprensa cobrar das autoridades uma investigação e respectiva punição dos que cometem um delito, mas também é necessário ter esse cuidado sobre quais informações realmente são relevantes e importantes de serem divulgadas.
 
Já tem algum detalhe sobre o lançamento?
O livro está em sua fase final, restam alguns ajustes, e por isso ainda não marcamos a data, mas em breve divulgaremos. O que posso garantir, é que o lançamento será ainda este ano.

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Esse é o segundo livro do jornalista Emílio Coutinho sobre o assunto

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