Cultura punitiva se alastra

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor
político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato



A cultura punitiva ganha corpo no país sob um pesado clima de denúncias, intenso bombardeio midiático, elevação de juízes e procuradores ao pódio de "salvadores da Pátria", invasão de quadros que administram a justiça no campo dos encarregados de fazer as leis e, para coroar, uma paisagem de violência que se descortina nos centros e nas margens do território. Os perversos efeitos dessa radiografia se fazem ver na quase nula credibilidade da esfera representativa, com extensão às instituições políticas, no desprestígio de governantes das três esferas federativas, e consequente desequilíbrio dos eixos de sustentação dos Três Poderes.

De instrumento excepcional, a ser usado de maneira pontual e voltado para desmontar redes de criminalidade, a delação tornou-se banal, abarcando um sem número de figurantes. Delatores, participantes de teias de corrupção acabam indo para suas casas na companhia de uma tornozeleira eletrônica, reduzindo de maneira drástica o tamanho de sua penalidade. Os delatados são presos ou aguardam a decisão da Justiça. O jogo obedece a essas regras: primeiro, colhem-se as denúncias; segundo, os fios dos rolos da corrupção são desfiados e, pela tuba de ressonância da mídia, particularmente a televisiva, chegam aos mais distantes rincões.

O céu abriga os mocinhos; no inferno, queimam-se os bandidos; e no limbo, jogam-se aqueles que ficam à espera de salvação ou condenação. Profissionais de investigação, buscas e apreensões se juntam a figuras do judiciário e são entronizados na galeria dos "heróis"; na outra banda, estão os bandidos, quase sempre reunindo políticos, empresários e burocratas.

As mídias massivas (rádios, TVs e meios impressos) são reforçadas pelas mídias especializadas (TVs do Judiciário e das casas congressuais). Nesse momento, outro fenômeno baliza comportamentos de atores da banda do bem: o narcisismo. No Estado-Espetáculo, protagonistas da política, do mundo do Direito e da Justiça, a par das classes artísticas, são atraídos pelo brilho e pelas luzes das mídias. Assim, meios impressos e eletrônicos equivalem ao espelho em que Narciso contempla sua beleza.

Dessa forma, as instituições políticas acabam recebendo respingos de lama e o desprezo com que imensas parcelas da população tratam a representação parlamentar. Não há, inclusive, preocupação de separar o joio do trigo, a semente sadia da semente podre.

Situações embaraçosas se sucedem. Embalados no celofane da opinião pública, os magistrados da Alta Corte são levados a adentrar o terreno dos legisladores, interpretando a Lei Maior em aspectos que, segundo se constata, não lhes dizem respeito. (Pergunta recorrente: se o STF pode afastar um parlamentar, em tese poderá afastar 513 deputados e 81 senadores). Com a decisão sobre Medidas Cautelares, na última quarta-feira, constata-se que metade do Supremo pensa assim. Aliás, nos últimos tempos a Corte Maior tem mais parecido uma instância criminal.

Uma nova Tríade do Poder se forma no país, formada pelo Ministério Público, Judiciário e Imprensa. Em relação à imprensa, manchetes retumbantes abrem o noticiário, com imenso peso dado ao lado acusatório e diminuto espaço à banda acusada. Que aparece no espaço de poucas palavras negando os fatos. O fato é que, sem apuração acurada, a imprensa acaba "condenando", antes da Justiça, uns e outros. Eventual correção que se faz, por meio de duas ou três frases, não tem o peso de uma manchete bombástica e negativa.

O elemento final da equação que explica a extensão da cultura punitiva no país é a insegurança pública. A violência tem se expandido em dimensão geométrica, enquanto o aparato policial não cresce.

Nota de pé de página: e ainda há demagogos usando programa eleitoral para conclamar o eleitorado a votar no PT, a Salvação da Nação.
 

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