Reforma política ou de costumes

*Gaudêncio Torquato


Há quem veja na reforma política - e não são poucos - a panaceia para as mazelas da República. Chega-se até a elegê-la como a “mãe de todas as reformas”. Trata-se de mais uma recorrente tese nacional de comprovação duvidosa. Afinal de contas, o voto distrital (misto, puro), o voto em lista, melhorarão a qualidade da representação popular? Depende. Se forem considerados, isoladamente, esses fatores darão apenas pequena contribuição. A questão maior diz respeito aos costumes tradicionais da política - o grupismo e o familismo, o mandonismo dos caciques regionais, a retaliação dos espaços da administração pública. A cláusula de barreira, proibindo a formação de partidos minúsculos, poderia efetivamente conferir densidade doutrinária aos quatro ou cinco grandes partidos que restariam? Pode ser. Mas dependerá também de outros componentes.



A relação de causa e efeito na padronagem política não pode ser avaliada a partir de medidas pontuais e casuísticas, como parecem se configurar algumas ideias que balizam a Reforma Política. A cláusula de barreira, por exemplo, se inspira na ideia de limpeza ética do quadro partidário, eliminando-se as famigeradas legendas de aluguel, que se transformam em moeda forte no período da programação eleitoral gratuita. Mas não deixam de embutir interesses voltados para sufocar o oposicionismo de correntes, que, unidas em determinado momento, poderiam derrubar projetos do rolo compressor situacionista.


As grandes questões do sistema político são de natureza cultural. E não se muda cultura por decreto, por imposição. O fisiologismo, por exemplo, alimento predileto dos políticos, está fincado nas raízes mais profundas do que podemos chamar de modelo latinizado da política. Trata-se de um modelo que coloca o interesse individual acima do interesse coletivo. A política passa a ser um empreendimento negocial. A administração pública lembra a extensão do mandonismo feudal das velhas capitanias hereditárias. A nossa teoria democrática tem feição de Primeiro Mundo, acolhendo com perfeição o ideário da liberdade, da justiça, dos preceitos constitucionais e dos direitos individuais e sociais, mas a prática é de Terceiro Mundo.


Tomemos o caso da representação política. Diz-se que o Congresso Nacional é o retrato apurado da comunidade nacional. Se os parlamentares tomam decisões erradas ou não dignificam o mandato, a culpa acaba sendo atribuída ao povo, que não sabe votar. Não é bem assim. O que tem ocorrido é um deslizamento da democracia direta, a que é exercida pelo povo quando elege os representantes, pela democracia mediada por interesses nem sempre consoantes com a vontade do eleitor. Os governos acabam sendo produto de acordos, barganhas e intermediações, deixando de refletir os resultados das urnas. Os grupos de interesse, que se multiplicam por todos os lados, assumem o lugar dos indivíduos como protagonistas da vida política. Ou seja, o conceito de democracia ampliada da sociedade moderna é substituído, entre nós, pela prática de uma democracia restritiva, distanciada do povo.


Não é sem razão, pois, que se acusa a democracia brasileira de estar esvaziada de conteúdo social. Os melhores quadros do Congresso Nacional acabam sendo reféns do mandonismo do governo. Imaginem-se os quadros menos qualificados, os chamados parlamentares do baixo clero. Acabam aguardando a vez na porta da esperança, onde mendigam verbas para sustentar o prestígio regional. Não é a toa que o Poder Executivo tem interesse em fazer do Legislativo um poder convalidado. Como se vê, a questão política imbrica-se, inclusive, com o próprio sistema de Governo. O modelo presidencialista em vigor, imperial e concentrador, já se mostra inadequado para a nossa realidade.


Dentro dessa moldura, qualquer reforma política será inconseqüente. Pois não adiantará reformar aspectos pontuais do sistema, sem alterações de fundo na modelagem do sistema econômico, com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais; na alavancagem dos programas sociais e na consolidação de programas educacionais avançados. Reformar a cultura política significa, sobretudo, reformar o cidadão. Cidadãos mais exigentes, cultos e preparados, serão o oxigênio para a gestão mais racional de nossa democracia. Até chegarmos a esse estágio civilizatório, teremos de conviver com partidos do faz de conta, administrações que mais se assemelham à capitanias hereditárias, tensões políticas constantes, justiça lenta e contingentes apinhados no balcão político das trocas. *Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação. Twitter: @GaudTorquato

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